A saída do euro: e se o divórcio amigável não for opção?
Ao contrário de Stiglitz, estou mais tentado a dizer que Portugal está condenado a permanecer no euro, até que outros, mais fortes, porventura decidam acabar com a moeda única.
Numa entrevista recente, Joseph Stiglitz, prémio Nobel da Economia, propôs que, perante o impasse em que a zona euro se encontra, Portugal saia da moeda única como forma de resolver os seus problemas de recessão e desemprego e, complementarmente, proceder à reestruturação da dívida pública, que seria parte do processo daquilo a que Stiglitz chamou um “divórcio amigável”.
É difícil não estar de acordo com Stiglitz quando aponta como limitações congénitas da zona euro a fixação do limite de 3% do défice como objectivo fundamental da política orçamental, e o facto de os estatutos do BCE centrarem a política monetária no controlo da inflação. É certo que o euro serviu para que a Alemanha rompesse com a estagnação em que a sua economia se encontrava no final dos anos noventa, porque a moeda única lhe permitiu aumentar a sua competitividade relativamente à França, e aumentar as suas exportações para os países do sul da Europa sem ter que desvalorizar o marco. Não podemos esquecer, no entanto, que a moeda única também permitiu a países como Portugal, Grécia e outros, obterem financiamento fácil e a taxas de juro baixas. Foi esse endividamento, conjuntamente com os fundos europeus, que financiou o aumento do investimento em novas infra-estruturas sem qualquer paralelo com as décadas anteriores. A principal consequência nefasta de tudo isto foi que estes países se viram, a partir da crise do “sub-prime” de 2007 nos EUA, na condição de vítimas imprudentes, mas não inocentes, de um novo contexto financeiro internacional que tornou a dimensão das suas dívidas públicas incompatível com o recurso normal ao financiamento nos mercados financeiros. A diminuição da oferta de fundos no mercado financeiro internacional, que então ocorreu, conjuntamente com as polémicas descidas abruptas dos ratings destes países, e os comportamentos especulativos que as circunstâncias possibilitavam, conduziram as taxas de juro da dívida pública de Portugal e da Grécia para níveis insustentáveis. O recurso aos programas de assistência financeira tornou-se então inevitável.
Naturalmente que a reestruturação da dívida, com alongamento de prazos e algum perdão parcial, seria benéfica para Portugal. A situação é mais grave na Grécia cujo peso da dívida, bastante mais elevado, levou a que uma reestruturação tivesse já sido feita, embora claramente insuficiente se atendermos à situação da economia grega. A questão é que uma reestruturação da dívida deve obter o consenso dos credores, caso contrário os custos de conflito com estes, que incluem a dificuldade no acesso ao mercado de capitais, podem ser superiores aos benefícios. Assim, em vez de proveitosa, uma reestruturação da dívida pode tornar-se ruinosa ou, pelo menos, inútil. Há que ter em conta a hostilidade alemã à reestruturação das dívidas de Portugal e da Grécia, que é determinada pela recusa em sofrer perdas, mas que, para além disso, é um sinal contra o risco de um eventual processo de reestruturação pedido também pela Itália, cujo impacto nos balanços dos bancos e fundos de investimento alemães seria muito mais significativo do que o dos outros dois países.
E a saída amigável do euro será possível? Não é fácil se tivermos em conta que um país que abandone a moeda única em condições de fragilidade financeira necessita que os países que permanecem no euro aceitem conceder-lhe um empréstimo com o qual compra as reservas cambiais necessárias para manter a estabilidade da sua moeda. Adicionalmente, é necessário que o perdão da dívida que, de acordo com Stiglitz, deverá fazer parte do processo, tenha uma dimensão tal que não seja completamente anulado pela desvalorização da moeda nacional subsequente à saída do euro. Mas, se cada banco central nacional tem uma quota no BCE, não tem direito a uma parte dos activos deste, quando sai do euro? Sim, mas, uma vez que na zona euro não há uma moeda exterior com a qual os bancos centrais nacionais façam a liquidação dos pagamentos entre os países membros, esses bancos centrais nacionais dividem-se em dois grupos: os devedores e os credores. Como o Banco de Portugal tem sido cronicamente devedor no Euro-sistema, a saída do euro implica, naturalmente, o vencimento dessa dívida, o que corresponde a mais um custo de saída. Por último, sendo pouco provável que a Alemanha veja com bons olhos a saída confortável de um país membro da zona euro, pelo incentivo à fuga da moeda única que pode causar em países que venham a encontra-se em situação semelhantes, as negociações de saída serão inevitavelmente muito difíceis.
E depois da saída, o que fazer com a nova moeda? Se acreditarmos que ter moeda própria corresponde a uma verdadeira soberania monetária, estaremos de acordo com Stiglitz quando afirma que o país poderá levar a cabo uma política monetária e uma política orçamental que ponham o país a crescer. Isto é, o governo aumentaria a despesa pública emitindo dívida que seria comprada pelo banco central através da criação de moeda. O problema é que o banco central duma pequena economia aberta ao exterior tem muito pouca autonomia para levar a cabo uma política monetária independente. Isto porque, neste tipo de economia, o crescimento significativo da massa monetária leva facilmente ao aumento de importações de bens e serviços e à saída de capitais, das quais resultam subidas das taxas de juro que afectam negativamente o investimento. O desemprego gerado pela redução do investimento e de outra despesa privada interna, poderia então anular ou suplantar o emprego entretanto criado pelo aumento da despesa pública. A eficácia da política monetária deste banco central seria ainda menor se o aumento dos preços das importações, causado pela desvalorização da moeda nacional, ocorrida ao longo deste processo, conduzisse a economia a um círculo vicioso de inflação e desvalorização, como o que a economia portuguesa atravessou na década de oitenta. Por tudo isto, não partilho a perspectiva de Stiglitz de que começa a ser claro que, para Portugal, estar dentro do euro custa mais do que estar fora. Para mim, é apenas claro que a permanência no euro tem sido penosa desde o início da crise da dívida, e sê-lo-á enquanto este problema perdurar. Mas não tenho provas de que a saída crie uma situação mais favorável, e a história do escudo também não ajuda a criar convicções nesse sentido. Basta recordar que, poucos anos passados depois do arranque do período inflacionista, foi pedida uma intervenção do FMI, em 1978, seguida de outra em 1983, ambas acompanhadas de desvalorizações do escudo. O afluxo de fundos europeus, a partir de 1986, terá contribuído para manter alguma estabilidade cambial, após o fim do período da desvalorização deslizante, mas não evitou a necessidade de mais uma desvalorização do escudo em 1992, pouco antes da entrada na segunda fase da passagem à moeda única. Mesmo que a saída da moeda única se verifique, é difícil que o euro fique totalmente arredado do dia-a-dia da actividade económica de um país que regresse à sua moeda nacional. A desconfiança na estabilidade do valor desta fará com que, com grande probabilidade, muitos contratos continuem a ser denominados em euros. Esta concorrência entre o euro e a nova moeda nacional implica um risco cambial interno permanente, que afecta sobretudo os que tenham rendimentos em moeda nacional e compromissos a pagar indexados ao euro.
Assim, ao contrário de Stiglitz, que afirma que Portugal estará condenado se não sair do euro, estou mais tentado a dizer que Portugal está condenado a permanecer no euro, até que outros, mais fortes, porventura decidam acabar com a moeda única.
Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra