Cláudia Cavadas: “Os cientistas são um bocadinho infantis”
A neurofarmacologista tem dificuldade em levar-se a sério, apesar de trabalhar 17 horas por dia e de receber financiamentos internacionais para procurar o elixir da juventude. Na Universidade de Coimbra, quem ouve as suas gargalhadas pode pensar que é “tolinha”. Mas isso seria um erro científico.
Sou a terceira de quatro irmãos e ganhei a alcunha de bebé. Fui uma criança muito bem-disposta que atraía tudo com muita facilidade. À minha volta, todos me encorajavam. A minha mãe elogiava muito os filhos, dizia que éramos o máximo. Nunca tive medo do ridículo, queria chegar onde os outros chegavam. Quando os meus irmãos brincavam nas ruas de Cantanhede e tocavam às campainhas dos vizinhos para depois fugir, eu, que fui sempre gorducha, nunca deixei de ir. E lá seguia atrás, a correr com esforço. Não quero competir. Quero brincar com os outros. Como o burro do Shrek que está sempre a dizer “Estou aqui. Estou aqui”. Eu sou o burro do Shrek.
O meu avô achava-me muita piada e alimentava a minha auto-estima. Eu costumava dizer que era a favorita, mesmo que não fosse. Passava as férias de Verão na casa dele, em Cascais. Entrávamos numa loja e ele dizia: “Escolhe o que quiseres.” Ele vendia sementes e comida para pássaros e era uma figura um pouco exótica. Fazia experiências a cultivar ananases e alfaces sem herbicidas. Foi a primeira pessoa que ouvi a preocupar-se com a comida biológica. As alfaces eram minúsculas, mas ele tinha um orgulho enorme naquilo. Havia sempre muitos livros de Ciência ao pé dele e eu era aquela que tinha os manuais de Química que mais ninguém tinha. Ele sabia um bocadinho de cada coisa. Achava piada aos vulcões, mas não sabia nada a fundo sobre vulcões. Muita dispersão. Na Ciência não se vai longe assim… Mas ele tinha muito orgulho de mim por tudo o que eu fazia. E é o orgulho dos outros que me incentiva.
Quando eu tinha 11 ou 12 anos, fui numa visita de estudo à Bayer. Como era a mais baixa da turma, fui à frente para conseguir ver. A mulher que nos mostrou a fábrica deu-me muita atenção, passou a visita sempre a falar para mim. Nesse momento, decidi que ia seguir Ciências Farmacêuticas para trabalhar na indústria. Quando tomo uma decisão, convenço-me e não olho mais para trás. Os sapatos que eu escolho são os melhores de todos e não preciso de olhar para mais nenhuma sapataria. Sou sempre assim.
E foi assim que cheguei à Faculdade de Farmácia em Coimbra com 17 anos. Encarei todo o processo como uma nova conquista. Conhecia toda a gente. Uma colega que acabou por se tornar a minha melhor amiga disse-me que olhava para mim e pensava: “Como é que alguém pode ser feliz aqui?” Aos 17, apercebi-me de que não chorava há seis anos. Recentemente tomei consciência de que a felicidade não é bem vista, incomoda muita gente. Dizem-me: “Tu enervas-me”, “Porque estás sempre bem-disposta?”, “A vida corre-te assim tão bem?” Acho que muitos pensam que sou tolinha. Mas trabalho 17 horas por dia.
No fim do curso, determinada a seguir a vertente industrial, fiz um estágio de seis meses na Luso-Fármaco. No dia em que cheguei, anunciaram uma série de despedimentos. Estava ali para aprender e ouvia: “Oh doutora, vem para aqui fazer o quê se isto vai fechar?” Mas eu gostava era de falar com as pessoas. Era convidada para todas as festas de ano. Um dia, o director técnico chamou-me ao gabinete para me dizer que eu dava demasiada confiança, que me tinha aproximado em demasia. A partir daí, passámos a comer os bolos de aniversário numa sala fechada para que ninguém visse a estagiária a conviver com os mais velhos. Paravam-me no corredor e diziam-me: “Vire-se de costas para eu lhe contar uma anedota.”
Nesse estágio percebi que não gostava nada de produção e indústria farmacêutica. Inscrevi-me por acaso no mestrado em Biologia Celular em Coimbra e fui aceite. Descobri a minha paixão pela Ciência através do estudo. A investigação científica, a procura, é verdadeiramente obsessiva. É um vírus. Quando comecei a dar aulas, passei a cronometrar o tempo que demorava a preparar as lições para não me perder na obsessão.
Tenho uma vida dupla com uma carga horária excessiva e depois prejudico-me em horas de trabalho. Acho sempre: “Isto é engraçado”, “as pessoas dão atenção”. Dou aulas na Faculdade de Farmácia, faço investigação e lidero o grupo Neuroendocrinologia e Envelhecimento no Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, e ainda coordeno o Gabinete de Comunicação de Ciência deste centro de investigação. E ainda sou a actual Presidente da Sociedade Portuguesa de Farmacologia. Costumo dizer que devia ter uma chibata no carro para bater com ela em mim mesma e só depois decidir se aceitava os convites que me fazem. Numa avaliação externa, chamaram-me a atenção para a necessidade de me focar, disseram-me que não podia estar em 20 projectos diferentes. Foi uma vergonha. Uma comissão científica internacional e vieram ralhar comigo…
Fiquei paranóica com isso de focar. A dispersão talvez seja gira em termos pessoais, mas para se ser reconhecido há que se focar numa determinada área. Ou não se consegue saber nada a fundo. Então, cientificamente, foquei-me. Já se sabia que a restrição calórica faz aumentar a longevidade dos animais de laboratório. Há uma área do cérebro — o hipotálamo — que é responsável por dizer ao organismo que temos de comer quando temos poucas calorias através de uma molécula — o NPY — que aumenta quando há restrição calórica. A minha pergunta foi: “Se aumentarmos essa molécula no hipótalamo, conseguimos aumentar a longevidade?” Estamos à procura do elixir da juventude. Sabemos que podemos morrer um pouco mais tarde se tivermos cuidado com a alimentação. O ideal seria criar um medicamento que imitasse a restrição calórica para impedir que certas doenças acontecessem. Se conseguirmos evitar o envelhecimento, talvez seja possível evitar ou atrasar o aparecimento de todas as doenças que têm o envelhecimento como factor de risco. Se conseguirmos imitar a restrição calórica numa cápsula ou comprimido, não temos de levar um estilo de vida excessivamente regrado.
Um dos artigos foi publicado numa revista internacional muito conceituada, PNAS, Proceedings of the National Academy of Sciences, o que nos abriu as portas para mais financiamento. Quando soube da notícia, ia morrendo engasgada com um pedaço de pão. Fiz uma grande festa com leitão assado. Assim que enviei o e-mail para o centro de investigação inteiro com a palavra “FESTA”, pensei: “Se calhar não foi boa ideia.” Gosto de partilhar com os outros, mas já percebi que não é bem visto. Sou demasiado crédula. Acho sempre que tudo é muito importante. Tenho vontade de falar das descobertas no momento. Fui aprendendo a conter-me porque a minha tendência é para chegar às aulas e dizer: “Agora temos um resultado muito engraçado, mas não contem a ninguém…” No laboratório, não me mostram logo os resultados porque sabem que eu me entusiasmo imediatamente. Então fogem de mim até terem a certeza de que não foi um acaso. Felizmente, tenho um grilo falante em casa, que é o meu marido. É ele que me diz: “Mas não é melhor ver isso com mais atenção?” Até os meus filhos põem o travão. “Lá vens tu, mãe…”
Por agora, estou focada no envelhecimento, que é suficientemente lato para mim. Mas não vou resistir. É tipo o brinquedo dos outros… No outro dia, a Polícia Judiciária pediu apoio à Universidade de Coimbra para saber como as diferentes faculdades podiam colaborar em termos de investigação policial — desde a informática à balística e ao doping. E eu então descobri que talvez tivesse jeito para ser polícia. Eles trataram-me tão bem e eu pensei: “Se calhar gostava de trabalhar aqui.”
Eu sou muito infantil. Fui sempre muito infantil. Esta investigação da restrição alimentar e do envelhecimento parte de uma atitude infantil. Se eu tivesse pensado muito sobre isso, nunca me teria metido numa coisa destas. Mas os cientistas são um bocadinho infantis. Falamos de doenças sérias e graves de forma muito alegre e com um grande sorriso no rosto porque estamos entusiasmados com as descobertas que fizemos. Brincamos com as coisas, acreditamos antes de conseguirmos provar. Mas não sei se há outra forma. Temos mesmo de acreditar em contos de fadas.