Ministros do diabo
As cartas de António de Andrade são quase um manual de interferência externa político-religiosa.
O jesuíta António de Andrade nasceu (em Oleiros) por volta de 1580 e morreu envenenado (ao que parece, por um criado da própria Companhia de Jesus) em 1634, em Goa. As quatro cartas deste volume foram escritas em 1624, 1626, 1627 e 1633. Conforme explica o historiador José Raimundo Noras, na nota introdutória, é esta a primeira vez que se reúnem as quatro cartas onde o missionário relata a sua travessia dos Himalaias e aquilo a que ele próprio terá chamado o “novo descobrimento do Grão Cataio ou Reinos do Tibete”.
Cartas do Tibete, de António de Andrade, é o quinto livro da pequena editora Livros de Bordo e é também o quinto que tem por matéria a relação europeia com a Ásia. A editora estreou-se em 2014 com uma reedição das Paisagens da China e do Japão, de Wenceslau de Moraes, mas não publica só escritores portugueses: traduziu Giovanni da Pian del Carpini, monge e viajante franciscano do século XIII, que escreveu uma História dos Mongóis aos quais chamamos Tártaros, um livro de Jeff Fuchs sobre a antiga rota do chá e dos cavalos, e o relato jornalístico de Jonathan Watts Quando Mil Milhões de Chineses Saltam.
Ninguém ignora a importância da correspondência jesuíta para o conhecimento europeu do mundo asiático. Também ninguém terá a ilusão de formar, através dela, uma imagem clara do que era esse mundo no século XVII. Estas cartas não são propriamente grande literatura. Remetidas à hierarquia (as três últimas do padre António de Andrade nada menos que ao Superior Geral da Companhia de Jesus) são, no essencial, relatórios de missão. Textos políticos, que contabilizam triunfos e reveses de um projecto proselitista. Isso, porém, ainda lhes aumenta o interesse. É possível ler nelas, a par do contacto áspero mas fascinado com pessoas, línguas e lugares de uma estranheza quase irremissível, os processos que foram formando essa gigantesca alucinação a que se deu o nome de “Oriente”.
Primeiro, porque António de Andrade viaja para o Tibete em 1624 convencido de que há um reino de cristãos do outro lado da fronteira: o mítico Cataio, precisamente. É esse o modelo do seu discurso de missionário: converter os tibetanos é como trazê-los de volta a uma verdade que eles já têm ou já tiveram. Estão obscurecidos pelo erro (e enganados pelos lamas), mas erro e engano desfazem-se com argumentação irrefutável. E também com uma insistente presença na corte que se quer influenciar, usando de todas as manobras para atrair o poder político à esfera cristã. Neste caso, a corte do antigo reino de Guge, no Tibete Ocidental. As cartas de António de Andrade são quase um manual de interferência externa político-religiosa, tendo no centro do alvo justamente aquele que veio a ser o último rei do Guge (Tashi Drakpa De) e a sua esposa, “mulher prudentíssima” a quem Andrade multiplica elogios.
A última carta – escrita em Goa, já depois de o autor deixar as funções de Provincial da Companhia de Jesus – expõe com crueza o fim da alucinação, ou seja, o fracasso da missão e o fim dos ambiciosos projectos de catequização. Levando à letra o relato, teria sido o acolhimento dado aos missionários jesuítas, que vários anos residiram na cidade de Chaparangue, a causa última das guerras que destronaram esse último rei e puseram o Guge sob o domínio do reino de Ladakh. No caos que se segue, acabam também os “padres roubados do que tinham e oprimidos com as vexações do capitão da terra”. É uma imagem violenta e conturbada do Tibete do século XVII, mas é ao mesmo tempo um atestado claro do atrito histórico causado pelo próprio projecto missionário católico, inscrito, como sempre esteve, nas zonas nevrálgicas do poder político e cultural.
A disputa militante contra o budismo, a que estava associado o irmão do rei de Guge enquanto “lama grande” (mas Andrade prefere chamar-lhe “refalsado lama”, sobretudo quando o acusa de ser o traidor que causou a capitulação do irmão), está bem vincada e detalhada nestes relatos. Mas surge mais evidente quando, ainda no início da viagem, no meio da peregrinação a que os jesuítas se misturam para poderem fazer a travessia dos Himalaias, Andrade fala com repugnância não isenta de fascínio dos “pagodes de obra sumptuosa”, mas sobretudo dos “jogues”, os ascetas “guardas e servidores” que, segundo ele, “logo nas figuras mostram serem ministros do diabo”. Esta retórica não deixa a mais leve dúvida acerca do combate institucional, da guerra de igrejas (se assim se puder simplificar) que a consciência jesuíta mobiliza sem qualquer complacência nem espírito de compreensão ecuménica.
Ao isolar um deles, “mui velho”, que tinha “as unhas e cabelo tão crescido e a catadura tão disforme que parecia o próprio diabo”, nem sequer a misericórdia cristã sobra a António de Andrade, que lhe deseja o mesmo castigo violento e humilhante que o rei Mogol impusera a outro jogue, mandando arrastá-lo pelos cabelos que depois mandou cortar, juntamente com as unhas, além de o açoitar e de o expor “pelos bazares, para que os rapazes com suas zombarias vingassem ou recompensassem os louvores e reverências que lhe faziam os gentios”.
Certo que nenhuma autoridade religiosa subsiste sem a violência que a preserve, pelo que não há aqui nada que surpreenda. O ponto é que estas cartas mostram como, numa situação de contacto histórico inédito, esse combate tem por efeito que a experiência de observação cultural que António Andrade protagoniza é interessante e inteligente em quase todos os tópicos, mas apenas útil às avessas se a lermos como testemunho da vida religiosa na Índia e no Tibete.
Isso não apaga e eventualmente explica a intensidade do impressionante relato da travessia da famosa cordilheira, logo na carta inicial. “Nos pés, mãos e rosto, não tínhamos sentimento, porque com o demasiado rigor do frio, ficávamos totalmente sem sentido.” A violência desta fronteira geográfica não impede o viajante de reconhecer a beleza das serras que descobre, “do meio para baixo”, como “a mais formosa vista neste género que em toda a minha vida tive”. Mas a violência da fronteira cultural, marcada pela oposição religiosa, não tem reverso nem atenuante: o que poderia ser um mundo novo já está codificado e condenado nos termos do mundo velho que o viajante transporta consigo como se fosse o único mundo verdadeiro.