Não haverá sangue

Nesta fase descendente do ciclo, as companhias petrolíferas preparam-se para varrer os restos da casa fóssil nos quintais dos mais frágeis.

“O pensamento que não age é uma traição”

Vergílio Ferreira

1. A Literatura sempre serve para alguma coisa. Além de outras finalidades não nomeáveis, serve não só para denunciar como também para anunciar. Em 1927 o escritor Upton Sinclair publicou um romance com o título lacónico de Oil!, baseado nas confusões da administração Harding, livro que funcionou como parábola sobre o início de uma era marcada pela sofreguidão do ouro negro, que iria desfazer impérios, criar impérios, pondo a correr, lado a lado, o crude e o crime. E no entanto, esse enlace iria permitir desenvolver à face de Terra, tempos históricos de um progresso nunca antes registado. Talvez por isso mesmo, oitenta anos depois, Oil! tivesse voltado a ser lembrado por Paul Thomas Anderson, através da adaptação que dele fez para o filme de 2007, a que deu o título de There will be blood. E a metáfora voltou a funcionar, não só como denúncia do pecado original, mas sobretudo como anúncio do pecado terminal – O filme que deu a conhecer Daniel Day-Lewis à volta do mundo, diz-nos de forma clara que o final da era do petróleo será tão dura e perversa como o seu início. O título com o verbo no futuro, “Haverá sangue”, apresenta-se com um aviso premonitório.

2. Mas tudo isso não passaria de mais um livro e uma fita americana, de que se falaria de longe, se acaso Portugal, de súbito, não se juntasse ao tema do petróleo como personagem de uma história de fim de ciclo. Quem diria? Um país que sempre foi um consumidor passivo, sofrendo todas as vicissitudes de um não produtor impotente, logo quando a ditadura do ouro negro parece estar a ser abalada pelo desenvolvimento galopante das energias renováveis, e tudo se encaminha rumo à libertação da ditadura do crude, aparece envolvido num plano agressivo de concessão do seu território para a exploração dos hidrocarbonetos. Dá que pensar. Muitos ainda não tomaram o assunto a sério, mas a questão é delicada, e mesmo os distraídos deveriam pô-lo na agenda.

3. De facto não se trata de uma simples brincadeira de mau gosto. Neste inesperado envolvimento existe uma questão de calendário. É sabido que a dependência dos hidrocarbonetos começa a ficar mais lassa, mas está ainda longe do verdadeiro declínio. Tudo indica que a energia fóssil vai conviver, durante anos, com as novas fontes renováveis, e porque entretanto a consciência ecológica se expande de forma exponencial, sobretudo nos países mais desenvolvidos, convém às petrolíferas manterem reservas em países onde o grau de financeiro de dependência energética seja alto, o nível de vida seja baixo, a cidadania seja pouca, o temperamento dos povos seja manso, e os regimes democráticos, débeis. Portugal tem tudo isso, e muito mais. Nesta fase descendente do ciclo, enquanto não se asseguram novos estilos de vida, as companhias petrolíferas preparam-se para varrer os restos da casa fóssil nos quintais dos mais frágeis. Por isso, os contratos de concessão assinados com Portugal podem ser humilhantes, estar blindados e comprometerem o futuro de três gerações, e o mais que se sabe, que tudo encaixa no plano de fim de ciclo. Foram assinados com a devida descrição e recato. Felizmente que houve pessoas, grupos, associações e autarcas que fizeram sair esses documentos fatais do seu esconderijo. As crianças portuguesas do futuro nunca saberão quanto lhes ficam a dever.

4. No entanto, houve aqui um engano.

Advogados agressivos, apertando a mão a políticos tíbios, decidiram a horas mortas dessa forma, porque contaram com um país que já não existe. Contaram com uma população ressentida por não ter beneficiado de uma cultura industrial competente, fascinada à última hora por um projecto petroquímico plantado no meio de actividades supostamente preguiçosas, as indústrias do lazer. Só que essa falácia não funciona mais. A população receia e bem a incompatibilidade de projectos que mutuamente se repelem e destroem. Contaram com uma população que acreditaria que a riqueza produzida pela extração de petróleo e gás natural seria revertida na região e no país, só que não se acredita porque as pessoas viajam, falam umas com as outras e sabem que o bolso onde se guarda o dinheiro do petróleo mora muito longe da mão de quem trabalha. Contaram sobretudo com um país sem estratégia própria. O mesmo país que cria o slogan de que Portugal será a Europe’s West Coast, a “ocidental praia lusitana”, vai tecendo contratos que transformariam as costas portuguesas em paisagens como as de Tarragona. Contaram com um país que assina em Dezembro os Acordos de Paris, mas teria disponíveis mar e terras do Algarve, um dos destinos mais preciosos da Europa, para serem perfuradas nos meses do Outono seguinte. Nós não somos um país dramático, somos um país de líricos, aqui não haverá sangue. Aqui tudo terminará em água salgada. Ou na do mar, onde tudo se esquece, ou na dos olhos, a que chamamos lágrimas. Para que essa fatalidade não aconteça, que nos agarremos à força da razão. Só que ela não existe por si mesma. É uma conquista que passa pelo nosso poder de demonstração. Debates urgentes nos esperam, se este regime for uma democracia.

Escritora

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