Vaiar o adversário nos Jogos Olímpicos? Para os brasileiros, isso é torcer
Os brasileiros levaram a sua torcida, forjada nos campos de futebol, para os estádios olímpicos. E assim começou uma briga de civilizações.
Como num concerto dos Rolling Stones, numas Olimpíadas toda a gente sabe quais são os hits. Ver Michael Phelps nadar. Ver Usain Bolt passar a meta à frente de todos os outros. Mas os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro têm as suas próprias idiossincrasias. Para alguns brasileiros, só teve uma coisa quase tão boa como ver o homem mais rápido do mundo correr ao vivo: participar na vaia estrondosa ao atleta francês Renaud Lavillenie quando ele recebeu a medalha de prata no salto à vara, na terça-feira à noite. “Estava triste porque não consegui ingresso [bilhete] para ver o Bolt. Mas só a vaia que dei nesse francês, e vê-lo chorar, valeu. Ganhei o dia”, disse ao jornal carioca Extra o engenheiro Dalton Marques.
A confissão desassombrada do engenheiro pode chocar brasileiros e, sobretudo, não-brasileiros como uma demonstração de incivilidade e ausência de espírito olímpico. Ainda para mais, no lugar mais alto do pódio estava um atleta brasileiro, Thiago Braz, medalha de ouro. Mas assim que o nome do atleta francês foi anunciado e a sua imagem apareceu nos ecrãs do estádio onde decorrem as provas de atletismo, as vaias ecoaram. Renaud Lavillenie, recordista mundial do salto à vara e campeão olímpico em 2012, chorou no pódio. O principal site de notícias da Austrália considerou esse episódio “o ponto mais baixo” das Olimpíadas do Rio. O comportamento aguerrido e ruidoso da torcida brasileira nos estádios olímpicos tem sido notícia praticamente desde os primeiros dias dos Jogos. As vaias - o buuuu profundo e em coro - dirigidas a qualquer equipa ou atleta adversário do Brasil são habituais em todas as competições, independentemente da modalidade. Elas enchem os estádios quando o rival do Brasil prepara o serviço, marca pontos, ou comete uma falha. Elas têm sido registadas mesmo em desportos em que o silêncio e o decoro são regra, como o ténis, esgrima ou ténis de mesa. Muitos atletas estrangeiros têm reclamado do comportamento do público brasileiro, notando que ele interfere com a concentração e, consequentemente, com os resultados.
“Vaiar o adversário num campo de futebol é considerado normal”, explica o escritor brasileiro Sérgio Rodrigues, autor de O Drible, romance futebolístico que lhe deu o Prémio literário Portugal Telecom de 2014 (publicado também em Portugal pela Companhia das Letras). “Como a nossa cultura é basicamente futebolística, acaba sendo natural que o torcedor leve esse comportamento para outros desportos.”
As vaias têm sido objecto de ampla discussão nas redes sociais, dividindo os brasileiros em dois campos: os que são contra e os que são a favor, os que sentem constrangimento pelo desrespeito e falta de educação demonstrados pelos espectadores nacionais num evento que está a ser seguido por todo o mundo (“Os torcedores brasileiros não têm maneiras”, disse à Reuters o comentador desportista brasileiro Juca Kfouri) e os que defendem que a vaia é um traço cultural brasileiro, que representa “torcida de verdade”, ao contrário da “torcida chata, calada e sem emoção da maioria dos países (principalmente europeus)”, como alguém escreveu no Facebook.
O comportamento olímpico da torcida brasileira é “fruto de uma pouca vivência de outros desportos” que não o futebol, nota Sérgio Rodrigues. “O brasileiro tem um défice de cultura desportiva muito grande. Esse torcedor que está indo nos estádios olímpicos jamais viu uma competição de salto com vara na vida. Nem mesmo pela TV. Então não tem a menor ideia de como se comportar e acaba se deixando levar pelo nacionalismo, pelo sentimento patriótico e acha que o papel que lhe cabe é vaiar o adversário.”
Apesar de entender que isso possa ser visto “como algo grosseiro ou indevido”, Sérgio Rodrigues critica a postura do francês Renaud Lavillenie, que “perdeu a medalha e tentou jogar a culpa na torcida” brasileira. Durante a sua última prova, Lavillenie foi vaiado pelas bancadas brasileiras e falhou o salto, perdendo o ouro para o brasileiro Thiago Braz. Logo a seguir, falando para as câmaras brasileiras, criticou o comportamento da torcida brasileira, comparando-a com a recepção dada pelos nazis ao atleta negro Jesse Owens nos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. “Desde então não víamos algo parecido”, disse o francês. Falando para as televisões francesas, foi contundente, referindo-se aos brasileiros como um “público de merda”.
“Ele perdeu a medalha porque ele saltou menos. Se faz parte do espírito desportivo da torcida mostrar um certo respeito aos adversários, também faz parte do espírito desportivo de um atleta - na verdade, ainda mais - respeitar a vitória de um competidor que foi melhor do que ele”, defende Sérgio Rodrigues. “Esse francês acabou justificando todas as vaias que ele levou.”
Não foram propriamente as vaias que chocaram Anne Fryszman, uma francesa que há 15 anos vive em São Paulo, onde trabalha no festival de curtas-metragens. “Foi o fim da picada, mas acontece. Começam 50 pessoas a vaiar, já parece um estádio inteiro. Quando você torce, você fica meio idiota, fala bobagem… Torcida não traz o melhor da gente ao de cima”, reconhece. O mais chocante foi ver as reacções na timeline do seu Facebook no dia seguinte. “No Facebook, a gente meio que escolhe os amigos que pensam igual à gente, né? De repente começou uma guerra França-Brasil. Achei bem chocante, vi comentários como: ‘Os franceses não consideram os argelinos de quinta geração como franceses, então foi merecido.’ A gente sabe que o racismo existe em França, que tem extrema-direita. Agora, eu não sei o que pensa o atleta que estava lá naquele estádio, não sei como ele vota. Tornou-se uma briga de civilizações, do tipo: os gringos contra nós. E isso eram reacções de gente de esquerda como eu, progressista como eu, que aponta o racismo do outro”, diz Anne, com surpresa. “Mas tem um clima actual no Brasil em que está todo o mundo pronto para odiar qualquer coisa”, conclui.