Na Cidade de Deus, tiro de um lado, medalha de ouro do outro
O primeiro ouro do Brasil nestas Olimpíadas jogadas em casa veio da Cidade de Deus. Até esse triunfo escancarou a dura realidade de quem mora numa das mil favelas do Rio de Janeiro. Teve festa, mas teve tiro também.
No dia em que uma judoca da Cidade de Deus ganhou o primeiro ouro olímpico do Brasil, o carro de Josias, estacionado numa das ruas mais movimentadas daquela favela carioca, levou 12 tiros de todos os lados. O mandamento doutrinário colado no vidro da frente do Chevrolet preto (“Não me inveje, faça o que eu faço. Ore!”) soa agora tristemente irónico. Ninguém inveja um carro cravado de buracos de bala. O vidro de trás virou um puzzle de mil estilhaços, as balas furaram o capô, e por pouco não acertaram em cheio no tanque de combustível. Josias fechou a loja “em baixo de tiro”, correu para casa e deitou-se no chão do seu quarto, no primeiro andar, enquanto a mulher e o filho se abrigavam na casa de banho. Uma bala furou a parede, mesmo por debaixo da janela do quarto. Outra bala bateu no fio da antena de televisão, que apagou logo.
O tiroteio, alegadamente envolvendo a Polícia Militar e traficantes, irrompeu antes das oito da noite de segunda-feira, escassas horas depois de Rafaela Silva, uma jovem negra e de família pobre nascida a poucos quarteirões dali, conquistar o pódio no judo feminino - e o primeiro ouro do Brasil numas Olimpíadas jogadas em casa. Esse ouro também é da Cidade de Deus, não deve ter tido morador que não pensou isso. Mas até esse momento, que deveria ser de celebração, escancarou a dura realidade de quem mora numa das mil favelas do Rio de Janeiro. Em vez de festa, tiro. “Não deu nem para sair de casa para comemorar”, diz Wagner Novais, realizador e morador da Cidade de Deus. “Temos tido várias noites de tiroteio. Só essa semana, foram três dias seguidos.”
“Isso aqui é uma selva, tem que saber onde pisar”, avisa Josias, que não se chama realmente Josias. Ele pede para não ser identificado pelo seu nome verdadeiro, por receio de sofrer represálias - se da polícia ou dos traficantes, não sabemos. “Se eu falo um pouquinho a mais, vai-me complicar a minha vida”, diz. “Os tiros que teve aqui ontem, como teve domingo também, veio mais da parte da [polícia] pacificadora. Porque eles não são treinados para entrarem numa comunidade. Eles não respeitam morador.” A partir de 2008, quando o Rio preparava a sua candidatura para sediar os Jogos Olímpicos, o Governo estadual instalou Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), uma espécie de polícia comunitária permanente, em várias favelas do Rio, para tentar neutralizar traficantes e as organizações criminosas que actuam nesses territórios como um poder paralelo. Num primeiro momento, as UPP parecem ter funcionado e tiveram os seus defensores, mas hoje é consensual que o programa não resolveu os problemas de segurança do Rio. A criminalidade atingiu o maior índice dos últimos dez anos. E a maioria dos moradores de comunidades que têm UPP, como a Cidade de Deus, acreditam que o projecto vai acabar após as Olimpíadas. “Tem UPP aqui, ainda. Mas vai sair”, garante Josias.
“Essa é a vida na Cidade de Deus: tiro de um lado, medalha de ouro do outro”, observa, com humor negro, Viviane de Salles, 26, fundadora de um projecto comunitário que organiza saraus de poesia num bar da Cidade de Deus, um lugar onde qualquer pessoa pode chegar e recitar um poema da sua autoria ou cantar um funk. “A gente não tem o básico, não tem ir e vir nem no lugar onde a gente mora. Aqui está um cenário de violência, mas na imprensa do Brasil não se fala disso, só se fala do lado bacana da vitória da Rafaela.”
O ouro de Rafaela emocionou o Brasil, que viu nela um exemplo de superação, não só por ter perdido há quatro anos nos Jogos Olímpicos de Londres, mas também, e sobretudo, por ser uma mulher negra, da favela, e Silva - o sobrenome mais comum no Brasil, sinónimo de pobre. (Refrão de um popular funk brasileiro: “Era só mais um Silva / Que a estrela não brilha”.) Se há país que precisa de uma história redentora, depois de tanto revés e derrota nos últimos tempos, é o Brasil. A vitória de Rafaela foi glorificada por uma imprensa que trata qualquer jovem negro morto pela polícia como um bandido, foi comemorada por quem tem medo de passar perto da Cidade de Deus, foi exaltada pela imprensa internacional que entra na favela de táxi e pede ao taxista para esperar porque não vai demorar muito.
No quintal das Olimpíadas
Chega-se à Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro, depois de atravessar os shoppings e os condomínios altos dos ricos na Barra da Tijuca, uma Miami brasileira, e depois desta dar lugar a uma zona industrial, de armazéns e auto-dealers, e depois da zona industrial virar mato, e depois do mato virar habitação social. Ou seja, fica longe, muito longe. Dá para vislumbrar o Parque Olímpico, onde Rafaela Silva ganhou o ouro, depois de encarar cinco lutas num único dia, da janela do autocarro que passa pela Cidade de Deus. Mas nenhum morador tem dinheiro para ir ver qualquer competição, apesar de ficar a uns sete quilómetros. Pelos descampados, a distância é ainda menor, garante Sérgio Leal, 44. “A gente está no quintal. Se a gente der um passo aqui, a gente chega lá. A gente chega no meio do progresso”, ri-se.
Sangue português do lado do pai, sangue angolano do lado materno, Sérgio é conhecido como TR desde os tempos em que foi DJ de hip-hop. Recentemente, ele co-fundou um projecto chamado Embaixada da Luva que proporciona aulas de artes marciais - boxe, kickboxing e muay thai - a jovens da Cidade de Deus. “A gente plantou o projecto a poucos metros de uma boca de fumo [ponto de tráfico de droga]. Cinco dos nossos alunos eram do tráfico. A gente ganhou deles. Nenhum bandido quer que o filho seja bandido. Um deles fez um pedido interessante: ‘Você pode matricular meu filho?’ Eu respondi: ‘Posso. Posso matricular seu filho e você.’ E, hoje em dia, ele está com a gente.”
Para quem é mais novo, o exemplo de Rafaela é inspirador, diz. “A minha filha tem dez anos, se sentiu representada. A gente se emocionou juntos. E a minha filha falou: ‘Ela mora aqui, né, pai?’ ‘Claro que ela mora aqui, filha.’ Minha filha também é negra. Ela precisa de referências na vida. A gente liga a TV, a TV não tem muita coisa para a gente. Você senta na escola, pouco você aprende sobre si, ou nada. Aqui, para um jovem concluir o ensino médio [liceu], é uma vitória. Ele não vê a universidade como restante desse caminho a ser percorrido.”
Cidade de Deus é plana, não é um morro que se sobe, ao contrário da maior parte das favelas cariocas, e talvez por isso pareça um território mais neutro ou acessível. Os primeiros moradores chegaram há 50 anos, transferidos de outras favelas que desabaram com uma chuva bíblica.
O autocarro pára numa praça igual a tantas outras no Rio, com árvores e velhinhos à sombra, um parque com máquinas para praticar exercício físico, um posto clínico. Dobram-se algumas esquinas e chega-se à casa onde Rafaela Silva nasceu há 24 anos, na Rua Jessé. A família saiu há alguns anos para uma comunidade não muito longe daqui, Freguesia de Jacarepaguá, mas as tias de Rafaela continuam aqui. Tias, avô, primos, vizinhas, e o pai de Rafaela, Luiz Carlos Silva, concentraram-se à porta, revezando-se entre os jornalistas estrangeiros que têm aparecido desde manhã. A CNN entrou para filmar a cozinha. Rafaela puxou ao pai, fisicamente. “Até na briga”, diz Luiz Carlos, um ex-estafeta que ganha a vida fazendo transportes com a sua carrinha. “Aqui ou você brigava, ou você passava como trouxa”, conta, afável. Rafaela “adorava dar porrada”. Para tirá-la das ruas e dominar a agressividade, o pai pô-la a fazer aulas de judo, juntamente com a irmã Raquel, três anos mais velha. O resto é história. No dia em que Rafaela ganhou o ouro, Luiz Carlos estava na arena. “Nós ficamos ali pertinho. Ela não virava para nós, porque estava bem focada. Mas ela escutava.”
Ele diz que adorou quando viu imagens na televisão de pessoas comemorando a vitória da filha “lá no Porto Maravilha”, uma praça no centro do Rio onde foi montado ecrã gigante para acompanhar as competições olímpicas de atletas brasileiros. “Vi que não era só eu, minha família.” Alguns vizinhos e moradores planeiam uma recepção para Rafaela Silva, assim que ela puder visitar a comunidade. “Ela vai vir”, garante o pai.
Vivi de Salles mora poucos números à frente. “Eu moro na rua mais famosa da Cidade de Deus! A rua da campeã olímpica!”, proclama, descendo as escadas da sua casa. Vivi não estava nem aí para Olimpíadas, nem sequer tinha TV em casa. No dia em que Rafaela foi somando triunfo atrás de triunfo no tatami - derrotando uma alemã em 46 segundos, derrubando a segunda melhor do ranking mundial, vingando-se da húngara, Hedvig Karakas, para quem perdera nos Jogos Olímpicos de 2012 - Vivi perdeu tudo porque passou a tarde no banco a tentar pagar a renda de casa. Durante as Olimpíadas, os bancos estão com horário de atendimento reduzido. “Os bancos estão infernais, né? Eu estava na fila, um cara deu um esbarrão no meu celular e ele caiu.” O telemóvel “deu um apagão” depois, quando ela já estava no ônibus, voltando para casa. Quando o aparelho ressuscitou, Vivi tentou ver a luta final pela Internet. “Vi no Facebook de uma galera que estava filmando a TV de casa, todo o mudo gritando!” Viu a meia-final e uma parte da final, mas depois a conexão caiu. “É tudo muito rápido! Mas fiquei muito feliz.” Pré-candidata a vereadora pelo PCdoB (Partido Comunista do Brasil), perguntaram-lhe se queria fazer algum comentário sobre a vitória de Rafaela. Vivi recusou. “Falar? Não, eu quero é viver!”, respondeu. E aqui está ela, na tarde seguinte, comprando uma antena interna de televisão numa loja dos trezentos para seguir os jogos. “Entrou na era da televisão!”, ironiza a amiga Fernanda Tatagiba, afectuosamente. Vivi, animada: “É por você, Rafaela!”
Uma clareira no meio do nada
TR assistiu numa padaria perto de casa. “E ali parecia dia da Copa do Mundo. Foi a maior choradeira quando ela ganhou. Quando ela não foi bem sucedida em 2012, o sofrimento dela transferiu para mim. A gente sabe o quanto é árduo, ainda mais para quem mora na favela, ter um lugar ao sol. Então, porra, foi feriado nacional na favela ontem.”
Ouro na Cidade de Deus abre “uma clareira no meio do nada”. A favela saiu das páginas policiais para as páginas desportivas. TR sabe que o lugar onde mora se tornou conhecido em todo o mundo por causa do filme homónimo de Fernando Meirelles que retratou Cidade de Deus como um cenário quase publicitário de violência. “As pessoas acabam acreditando que a Cidade de Deus só é aquele palco de guerra. Por mais que o filme seja uma adaptação de um romance”, lamenta. “A Cidade de Deus acorda cedo para trabalhar. Tem gente que dá duro. Ninguém está de bobeira, não. Tem calor humano aqui dentro. A gente precisa mostrar que a parcela negativa é muito menor se comparada ao dia-a-dia de uma comunidade que levanta cedo para brigar de uma forma muito mais digna. Aí você começa a dar um retrato de uma Cidade de Deus totalmente diferenciada do que ficou conhecido no mundo inteiro. Não vou dizer que a gente não tem problemas. A gente tem 50 anos de problemas. Mas, ao mesmo tempo, a gente tem 50 anos de luta.” TR vai avisando que tem a mania de enxergar vitória onde os outros só vêem derrota.
Em japonês, judo significa “caminho suave”. A história de Rafaela Silva foi tudo menos isso. Em 2012, quando perdeu em Londres, ela foi alvo de comentários racistas nas redes sociais brasileiras. Chamaram-na de “macaca” e mandaram-na “voltar para a jaula”. Ela passou muito tempo sem sair de casa e quase desistiu da carreira no judo.
“Ela foi uma lutadora. Quando digo lutadora, não é só no tatami. Ela foi lutadora da vida”, diz TR. “Ela sofreu para caramba para chegar lá. Parte da comunidade desacreditou dela, inclusive. Não foi só gente de fora. Parte dos seus também. E ela conseguiu enfrentar isso da melhor forma do mundo: trabalhando. Então é merecido, é dela, é uma benção. Eu não conheço ela pessoalmente. Mas me sinto representado por ela. Somente um sofredor para entender a dor de um outro sofredor, ‘tá entendendo? Você vê pela expressão dela. Ela não tem máscara. Eu não preciso de conhecer ela pessoalmente para dizer que ela mereceu. Você precisou?” É uma pergunta retórica, claro.