Caixa Geral de Depósitos: e depois da recapitalização?
O sinal claro de inflexão da banca pública exige igualmente que os actos danosos do interesse público sejam postos a nu perante o povo português.
Na tese de doutoramento que defendeu em 1981 na Universidade de Grenoble, Portugal face à CEE, António Romão referia-se à nova orientação face aos sectores nacionalizados da economia no pós 25 de Novembro de forma a que estes não pudessem desempenhar o papel de retoma da economia através do Plano. “O sector público – escrevia ele – acaba por funcionar mais como uma justaposição de empresas sem qualquer coordenação e como elemento de transferência de mais-valia para o sector privado da economia, sobretudo através da política de preços, de crédito e de investimento” [1].
Transpondo para o tempo presente, é forçoso reconhecer que a CGD, preze embora ser um banco de capitais públicos, funciona como um banco privado e que parte pelo menos desse funcionamento está ao serviço dos grandes interesses privados da economia, para os quais transfere valor, dilapidando um património que é de todos. A aventura imobiliária em Espanha abraçada estoicamente mesmo quando a bolha imobiliária estava prestes a rebentar nas mãos e outros bancos já ponderavam retirar-se da praça, não parece ter nada a ver com a realização da missão que deveria ser cometida a um banco público. Mas essa aventura já se traduziu em centenas de supressões de postos de trabalho e centenas e centenas de milhões de euros de prejuízos para os cofres do Estado [2].
O crédito a Joe Berardo para aquisição de acções no BCP, relevando de uma tomada de posição na guerra de poder contra Jardim Gonçalves, também não parece ter algo a ver com a realização de uma missão de serviço público. O mesmo sucede com o financiamento do empreendimento de luxo do Vale de Lobos ou o crédito ao GES numa altura em que já se sabia (ou a CGD não se teria dado conta?) dos problemas graves das empresas do Grupo e da dívida acumulada destas ao BES o qual havia deixado de as poder financiar por falta de acesso aos mercados.
Nestes como noutros casos, deparamo-nos, para além do mais, com a deficiente análise de risco e, corolariamente, a insuficiência, frisando por vezes a incongruência, das garantias (veja-se o caso do crédito a Joe Berardo para aquisição das acções do BCP “garantido” pelas acções a cuja aquisição se destinava). Os prejuízos (imparidades) resultando do não acautelamento pela CGD do interesse público, configuram, de facto, transferências de valor da esfera pública para a privada, não constituindo todavia a única forma através da qual se operam estas transferências.
É, assim, compreensível, que depois do BPN, do BPP, do BCP, do BES, do Banif, que absorveram somas avultadíssimas de fundos públicos [3], surja a tragédia da banca pública. Uma tragédia anunciada já que a banca pública só poderia sofrer o embate do efeito dominó dos desastres da banca privada, a quem está exposta, directa ou indirectamente (veja-se o caso do GES) e das suas relações privilegiadas com os Donos de Portugal, gulosos do Estado e do dinheiro público que este lhes proporciona e que a banca pública generosamente lhes serve.
Estas ligações obscenas da banca pública com os Donos de Portugal, directas ou intermediadas pelos partidos do centrão, pesam hoje na necessidade de capitalização da CGD mesmo se parte dessa necessidade se deve às imparidades “normais” do banco de um país onde o combate à crise se fez através do empobrecimento dos agentes económicos particulares e empresas e, por conseguinte, a precipitação da sua insolvência.
Quer isto dizer que uma vez a indispensável capitalização da CGD efectuada - e à altura das necessidades (o que ainda não está adquirido) - tudo vai entrar nos carris, como por encanto, ao instar do que alguns (demasiados) afirmam, mediante uma nova reorientação de estratégia, até agora apenas vagamente enunciada?
Nada é menos seguro. Primeiro, porque a Caixa deixará de ser aquilo que era, se as contrapartidas exigidas pelas autoridades europeias em troca da sua capitalização pelo Estado se concretizarem. Tais contrapartidas em termos de novos encerramentos de balcões (300) e de supressões adicionais de postos de trabalho (2500), prosseguem o objectivo de miniaturização, enfraquecimento e privatização a prazo da banca pública, inscrevendo-se de facto no processo de reajustamento da banca portuguesa ao serviço da concentração e fortalecimento dos grandes grupos bancários privados europeus.
Em segundo lugar, porque a missão de serviço público tarda a ser claramente definida limitando-se aos termos vagos de financiamento da economia. Ora, é necessário dar um sinal claro da inflexão estratégica da banca pública a um povo de rastos chamado nos últimos anos a resgatar banco após banco e, por vezes, a resgatar os bancos de que foi, ao mesmo tempo, directamente vítima (caso dos lesados do BES, do Banif...).
O sinal claro de inflexão da banca pública exige igualmente que os actos danosos do interesse público sejam postos a nu perante o povo português: é que, a transparência é a condição sine qua non da boa imagem ( e não o contrário), sobretudo se os crimes perpetrados na banca que é de nós todos derem lugar à responsabilização e punição dos que, mandados como mandantes, brincaram com os dinheiros públicos.
Por fim, porque a CGD, como empresa pública, deve estar sujeita à ética que se impõe ao funcionamento dos serviços públicos. Esta ética é incompatível com o aumento desmesurado (e injustificado) do número de administradores e das respectivas remunerações – a fortiori numa altura em que a empresa se prepara para suprimir milhares de postos de trabalho. Eticamente incompatível, é também a excessiva concentração de administradores oriundos da concorrência (BPI) entre os quais o futuro presidente da Comissão Executiva [4]. Enfim, a acumulação por este último das funções de representante dos interesses do Estado na instituição é uma lamentável confusão de género, de controlado-controlador, em nada acauteladora do interesse público, nem tão pouco das regras de boa governação.
E o que dizer da alienação total ou parcial de delegações no estrangeiro em países de forte (e crescente) concentração de emigração portuguesa [5] e da preservação (em vez do encerramento puro e simples) das sucursais dos paraísos fiscais de Macau e das Ilhas Caimão?
Temos de fazer do passado tábua rasa: não é desta banca pública que nós precisamos. Não é da banca amiga dos Donos de Portugal, da que financia as compras de Isabel dos Santos no Portugal leiloado, enquanto lhe crescem nas mãos as casas das famílias que expulsou por incumprimento do crédito que lhes concedeu. Não, o que precisamos, como de pão para a boca, é de uma banca pública com uma missão de serviço público claramente definida, braço armado do Estado que forneça os serviços monetários e financeiros às populações, e apoie as empresas produtivas. Em suma, uma banca que esteja ao serviço do interesse público dos seus proprietários: a população portuguesa do território nacional e da diáspora. Essa banca não precisa sequer de realizar lucros, precisa apenas de ter uma gestão equilibrada. Por isso não necessita fazer investimentos aventureiros e/ou negócios de risco ou especulativos, nem ter implantações em paraísos fiscais.
Dirigente nacional do Bloco de Esquerda, economista, lecciona economia portuguesa na Sorbonne e é autarca na região de Paris
[1] Romão, A., Portugal face à CEE. Uma avaliação global do processo de integração económica (1960-1980/82), Livros Horizonte, Lisboa, 1983 (p.32).
[2] Avaliam-se os prejuízos entre 800 e 1000 milhões de euros.
[3] Segundo a Direcção Geral da Concorrência da Comissão Europeia, entre 2008 e 2014 (já inclui BES) foram disponibilizados 86 mil milhões de euros de ajudas públicas a bancos (entre medidas de recapitalização, assunção de créditos em incumprimento dos bancos, linhas de crédito de último recurso disponibilizadas pelos bancos centrais e garantias prestadas aos bancos para as operações de financiamento). Destes apoios, resultou uma factura efetiva de cerca de 19,5 mil milhões de euros para o Estado português (já a contar com o empréstimo ao Fundo de Resolução de 3,9 mil milhões, mas sem contar ainda com o impacto Banif cuja factura deve ascender a 2.930 mil milhões de euros).
[4] Segundo o que tem vindo a público, a Comissão Executiva, composta por sete administradores, contaria quatro do BPI, se se fizer abstracção de um quinto, que sendo oriundo da Caixa-Brasil já passou pelo BPI; por outro lado, entre os administradores não executivos (cuja missão é controlar os actos de gestão da Comissão Executiva) está o ex-presidente executivo do Dresner Bank que já integrou a administração do BPI em representação do interesse accionista da Allianz.
[5] Segundo as informações vindas a lume, a maioria das supressões de balcões realizar-se-á no estrangeiro, preservando-se a África lusófona; Espanha (110 balcões) e França (48) deveriam ser os países mais afectados.