Espelho meu, espelho meu, há alguém mais bonito do que eu?
Stanley Kubrick entrou nos anos 70 no pico do seu culto. O que fez? Levou o público até ao longínquo séc. XVIII e, com Barry Lyndon, pôs-lhe um espelho na cara. Nunca um filme tão bonito nos mostrou o quão feios podíamos ser. Está na hora de voltarmos a ele, em Lisboa, no Cinema Ideal.
Passados 17 anos da morte de Stanley Kubrick, com 70 anos, e dos vários eventos que se têm celebrado, desde então, à volta do seu trabalho (o restauro e reedição dos filmes, uma exposição do seu espólio que tem dado a volta ao mundo), o realizador norte-americano continua a ser objecto de um dos cultos mais significativos na história do cinema. Muitas vezes, esse culto passa ao lado dos filmes e interessa-se, essencialmente, pelo mistério que rodeia a sua vida: um jovem americano autodidacta do Bronx que abandona o seu país, nos anos 60, para ir viver numa mansão, algures a norte de Londres, e de onde só sairia para fazer filmes em intervalos cada vez mais espaçados.
Depois de Laranja Mecânica (1971) e dos incidentes de delinquência juvenil inspirados no filme (e que levou Kubrick a proibir a sua exibição no Reino Unido), a sua fama de “recluso” aumentou significativamente. No pico da sua popularidade mediática, recusou, então, o olhar público e da imprensa para se fechar nos seus projectos. Os seus três filmes anteriores (Dr. Estranhoamor, 2001: Odisseia no Espaço e Laranja Mecânica) tocaram tanto em obsessões pessoais (a guerra, a tecnologia, a sociedade que o homem constrói para conter a sua violência) como nas dos espectadores desse tempo. O resultado, para além de uma sequência ímpar na história do cinema, foi um acordo de total independência financeira e criativa, para futuras obras, com a gigante Warner Brothers. Kubrick tornou-se, assim, no expoente máximo do realizador popular com poder financeiro e artístico absoluto. O seu filme seguinte era, por isso, aguardado com enorme expectativa.
O que levou, então, o rapaz do Bronx a optar por um livro esquecido da literatura inglesa, sobre a vida de um charlatão e alpinista social no séc. XVIII, e fazer um filme de época nos montes da Irlanda? Como acontece (quase) sempre na história do cinema, é preciso olhar para os filmes para entender a pessoa. E se Barry Lyndon, na sua estreia, deixou os espectadores e críticos incrédulos, 40 anos depois já é descrito como a jóia da coroa na carreira de Kubrick. Talvez porque nos custou tanto tempo a admitir que o que estava no ecrã, afinal, já não era uma projecção do que nós podíamos ser se tudo corresse mal — era Kubrick a dizer-nos, com imagens obsessivamente bonitas, o mal irreparável que já tínhamos feito ao mundo.
General Napoleão, Lyndon, Kubrick
Robert Kolker, crítico, professor de Cinema da Universidade de Maryland e um dos maiores especialistas do cinema de Kubrick (autor do interessantíssimo livro A Cinema of Loneliness, retrato do cinema americano dos anos 70 e título mais do que adequado ao universo kubrickiano), relembra, em entrevista ao Ípsilon, que “o que incomodou sempre os observadores foi o facto de Kubrick ter sempre recusado o olhar público sobre ele”. “A sua obsessão estava na pesquisa, na planificação, nas filmagens e na divulgação dos seus filmes, e isso tirava-lhe todo o tempo que tinha.” Kolker traça uma ponte com as origens da vida do realizador. “É preciso lembrar que Kubrick era um autodidacta que abandonou os estudos depois do liceu. Tornou-se, depois, num sugador impiedoso de conhecimento e de pesquisa, e trata-se, provavelmente, do realizador mais intelectualmente curioso da história, juntamente com Godard, embora este gostasse mais de o mostrar. Tudo o que Kubrick leu e pesquisou está nos detalhes do seu cinema. Basta ver o volume que se publicou com toda a pesquisa para o projecto de Napoleão [ed. Taschen].”
O cinema de Kubrick — logo, a sua vida — é também feito dos filmes que não se fizeram. E Napoleão, é sabido, era o projecto de “filme histórico” que Stanley Kubrick queria realizar. Mas o fracasso de Waterloo (1970), megaprodução de Dino de Laurentiis, leva os investidores a recuarem e Kubrick a abandonar — reza a lenda — o projecto da sua vida. Pelos vistos, nem o seu poder, em Hollywood, era absolutista. Continua Kolker: “Barry Lyndon foi o filme que fez por não ter conseguido fazer Napoleão. São períodos semelhantes que contêm muitas das informações que leu sobre os conflitos da época e os costumes [Barry Lyndon percorre o séc. XVIII e termina em 1789, meses depois da Revolução Francesa, Napoleão vem imediatamente a seguir]. É fascinante pensar, vendo Barry Lyndon, como é que ele teria feito Napoleão: uma figura masculina que sonha em subir na vida e, no fim, acaba derrotado. Esse tema é uma repetição na carreira de Kubrick, e acredito que teríamos visto algo parecido.”
Não é uma comparação descabida. A história de Napoleão é a de um génio militar que, vendo-se mais alto do que era, é levado por uma vaidade imperial que o conduz até à derrota. Barry Lyndon é um homem irlandês vulgar que, enganando quem o rodeia e, depois, a si próprio, sobe os degraus da escala social para viver a vida que sempre lhe negaram. Traído pela vaidade, e traindo o seu círculo (a família e a corte inglesa), revela-se sem talento para ocupar esse lugar.
Nem por acaso, Kubrick queria adaptar, inicialmente, outro livro de William Thackeray, mais denso e com um título revelador: Vanity Fair. Mas é por Barry Lyndon, depois de Napoleão, que Kubrick se apaixona. Jan Harlan, cunhado de Kubrick, colaborador do cineasta na pesquisa de Napoleão e, depois, produtor executivo de Barry Lyndon, reconhece os traços comuns entre as personagens e, arriscamos, quem as queria filmar. “Somos todos governados pelas nossas emoções nos momentos mais importantes da nossa vida”, explica-nos. “A inteligência, a educação, o conhecimento e a capacidade em pensar racionalmente pertencem ao dia-a-dia funcional. Mas nos momentos realmente importantes são as emoções que ditam as nossas acções. E Kubrick não se excluía dessa equação.”
Para Harlan, “o que o fascinava em Napoleão era ver um homem brilhantemente dotado e incrivelmente bem sucedido que foi incapaz de se conter quando Alexandre I da Rússia ignorou o seu bloqueio continental contra a Inglaterra”. “Napoleão quis vingar-se e deu início à campanha russa em 1812, que o levou à derrota. E só se pôde culpar a si mesmo.” Lyndon, por seu lado, subiu até ao topo da sociedade para se vingar de todos aqueles que, com poder, o rebaixaram na juventude e o empurraram para a guerra e o anonimato, rendendo-se à vaidade material e à luxúria para se fazer homem. O desejo de querer sempre mais levam-no à destruição de tudo o que conseguiu. “Tudo isso está em linha com as ideias de Kubrick sobre a humanidade: tornamo-nos vítimas das nossas emoções e os nossos inimigos acabam por ser a inveja, o orgulho e a vaidade”, explica Harlan.
1700: odisseia no passado
Kubrick lançou-se inteiramente na produção de Barry Lyndon, mas tentou saber, em primeiro lugar, se podia fazer o filme inteiro num estúdio a poucos quilómetros de casa. “Tudo isso é verdade”, admite Jan Harlan, “mas a Irlanda acabou por oferecer sítios que não tinham comparação.” “A opção de filmar com um sistema de projecções [como em 2001: Odisseia no Espaço] acabou por ser abandonada.” No entanto, a sua casa continua a ser a base para toda a pesquisa, testes, materiais e ensaios. “A regra número um era ter música de que gostasse”, especifica Harlan. “Tudo tinha de fazer sentido: desde a música folk irlandesa aos arranjos de Handel, Vivaldi, etc., ou o trio de Schubert, que é uma peça que está 30 anos à frente do tempo do filme. Todos os olhares e cada respiração estão em sintonia com a música.” Não surpreende, pois sabe-se que Kubrick ouviu toda a música que lhe passou pelos mãos, em casa, dos séc. XVII e XVIII, como veio a confessar ao crítico Michel Ciment, mais tarde, numa das suas raras entrevistas públicas.
Outra obsessão recaiu na pintura. Nessa mesma entrevista, Kubrick confessa o “pecado” de ter arrancado centenas de páginas ilustradas de centenas de livros de arte com quadros de Thomas Gainsborough (1727-1788), Antoine Watteau (1684-1721) ou William Hogarth (1697-1764), para encontrar palácios, paisagens, móveis e guarda-roupa que reproduzissem cada janela, arvoredo, cómoda ou ponto de costura. Chamou Ken Adam para a direcção de arte, que trabalhou com ele em Dr. Estranhoamor — e que tinha jurado para nunca mais. Ken Adam contou a história, em 2013, à BBC: “Kubrick queria encontrar sítios (…) praticamente sem sair de casa. Montámos um gabinete de guerra na garagem com mapas e pins por todo o lado. (…) Mas nada disso nos ajudou, porque os sítios bonitos e pacíficos já não existiam perto de Londres. Deu-me cabo dos nervos. Cinco meses depois, convenci-o a mudar a produção para a Irlanda. Passou-se a ver como o general Rommel. Equipou-nos com Volkswagens e transformámo-nos numa unidade móvel, na Irlanda, à procura de sítios. Passei semanas a ser perseguido por touros, estava a dar em louco. Acabei num hospital na Inglaterra com um esgotamento.” E acabaria por ganhar o Óscar de Melhor Direcção Artística.
A obsessão em querer reproduzir o séc. XVIII, dois séculos mais tarde, pelos olhos de quem o tinha visto, ajudou Barry Lyndon a torná-lo num objecto insuperável na reconstituição de uma época em cinema. “Uma das coisas fascinantes”, diz-nos Robert Kolker, “é ver como Kubrick resolveu o problema de fazer um filme de época, talvez o género mais difícil de se reproduzir. Kubrick elimina o elemento de ridículo ao recorrer à pintura, tornando-a, praticamente, no ecrã. Parece ter consciência de que é impossível reproduzir o passado e que a única coisa que podemos reproduzir é, precisamente, a ideia que temos dele, logo, o que aprendemos em leituras e vemos na pintura da época.”
Para isso, colocou-se outra exigência delirante. De forma a reproduzir as cores e a luz da época, pediu ao director de fotografia John Alcott (outro Óscar) para esquecer a luz eléctrica. Nasceu, aqui, uma das contradições mais fascinantes de Barry Lyndon: para filmar o séc. XVIII, a equipa recorreu a lentes usadas pela NASA, em fotografia de satélite, que permitiam filmar à luz das velas. Uma opção técnica que obrigou a reconstruir câmaras, filmar centenas de takes para manter a mesma altura das velas entre planos e a posições praticamente estáticas dos actores, de forma a não ficarem desfocados na imagem. “É fascinante ver esta tensão que está no filme: filmar um período histórico antigo com recurso às tecnologias mais avançadas da época”, diz Kolker. “E estamos a falar de uma altura em que os filmes não tinham a tecnologia digital de correcção de cor na pós-produção.” Ou seja, nada é feito com recurso a computadores.
Kubrick impôs também escolhas peculiares no casting. Ryan O’Neal, estrela americana dos anos 70, foi chamado para encarnar o irlandês arrivista e aspirante a lorde, escolha pouco unânime. Marisa Berenson, modelo da Vogue, foi escolhida para Lady Lyndon, personagem de poucos diálogos a quem Kubrick pediu para não apanhar sol, meses antes da filmagem, de forma a ter a palidez certa. A propósito de igual relançamento do filme em Inglaterra (esta sexta-feira), Berenson veio a descrever Kubrick, à imprensa, como “encantador (…) não difícil, apenas perfeccionista”, apesar de “obsessivo e bulímico” no que toca ao cinema (The Independent). Numa projecção recente de Barry Lyndon, em Los Angeles, Ryan O’Neal contou como Kubrick protegia os actores, mas não tanto outros: “Kubrick era magnífico. Tinha um man love por ele. Fiz três meses de provas de guarda-roupa e filmei durante um ano.” Com Kubrick, uma cena demorava um dia inteiro a filmar. “Lembro-me de uma cena em que o barulho dos cavalos, a andar, perturbava os nossos diálogos. Então Kubrick fez a equipa puxar as carroças [quando falávamos]. Olhava pela janela e via pessoas a cair: 'Lá vai um electricista, lá vai um maquinista.'”
Só uma coisa interrompeu a rodagem de Barry Lyndon: uma ameaça terrorista que não terá gostado da reprodução de batalhas antigas de soldados colonialistas ingleses. Jan Harlan conta-nos: “Kubrick estava a acabar de filmar, por sorte, aquilo que queria fazer na Irlanda, quando recebeu uma carta ameaçadora, em nome do IRA [Irish Republican Army], que os nossos contactos sábios nos aconselharam a levar a sério. Por isso, toda a produção teve de se mudar para Salisbury, no Sudoeste inglês.”
De olhos bem abertos
Mas o filme foi mesmo terminado e a luz das velas perdurou na história do cinema, ao ponto de “séc. XVIII” e “NASA” surgirem centenas de vezes, a partir de 1975, nas mesmas frases. O "olhar de satélite" sobre os seus corpos trouxe uma nova luz às entrelinhas do cinema de Kubrick: o desejo, o sexo, o erotismo. Os momentos em que Barry Lyndon se apaixona, ao longo das três horas de filme, não vivem pelos diálogos: Kubrick filma rostos a arder, corações a palpitar e deixa que os seus olhares façam amor no silêncio dos planos. Quem é que disse que Kubrick não era romântico? “As cores de Barry Lyndon são emocionais”, diz-nos Robert Kolker. “É certamente o filme com maior carga emocional em toda a sua carreira e põe os sentidos do espectador em alerta permanente.” Entre o primeiro olhar e o primeiro beijo de Barry a Lady Lyndon não existe nenhuma palavra. E o momento em que se conhecem, num jogo de cartas, sendo a batota o ganha-pão de Barry (um indício para o que virá a seguir), é uma das melhores homenagens ao cinema mudo depois de este ter desaparecido.
Barry Lyndon viria a revelar-se, assim, como um primeiro ensaio para o filme que Kubrick faria antes de morrer: De Olhos Bem Fechados (1999), a história de um casal, do seu ciúme e das suas traições. Jan Harlan confirma-nos a ligação entre os dois projectos: “Aquilo que Kubrick queria fazer depois da MGM desistir de Napoleão era, na verdade, uma adaptação de História de Um Sonho [Traumnovelle] de Arthur Schnitzler. Ele estava apaixonado pela história e já tinha um contrato assinado com a Warner Bros, mas não estava satisfeito com o guião. Foi trabalhando e trabalhando nele até fazer De Olhos Bem Fechados, 30 anos mais tarde.” Nos seus estudos, Kolker encontra, aqui, outra obsessão de Kubrick: a ideia de uma família que, em vez lugar seguro, tal como na tradição cinematográfica americana, é uma ameaça. O próprio revela-nos: “Kubrick andava vidrado na história de Schnitzler desde o início dos anos 1950.” “Se juntarmos isso ao facto de a vida doméstica ser uma parte central da vida dele… Estamos a falar de um rapaz que queria tanto casar-se que o fez três vezes e que dependia do apoio da família — não esqueçamos que Jan Harlan, o seu cunhado, era produtor executivo dos seus filmes. Isso tornou-se num tema do seu cinema: domesticity gone crazy. Está em Lolita (1962), The Shining (1980) e em Barry Lyndon, que põe todos contra todos, classes contra classes. Isso está sempre na cabeça de Kubrick.”
A ascensão de Barry ao topo da cadeia social e o seu casamento dão lugar, portanto, a uma vertiginosa queda. A música de Handel, que parecia um elemento de época, transforma-se em marcha fúnebre. A sumptuosa maquilhagem da nobreza transforma-se, afinal, numa caracterização que a aproxima da morte. O maravilhoso zoom recuado sobre as personagens, gesto de refinamento técnico, abre-se, afinal, para mostrar uma solidão em enormes espaços vazios e um olhar sobre momentos da História que se repetem. Como se Barry, por vingança do que o mundo lhe retirou à nascença, só tivesse dentro de si traição para oferecer a quem deseja amar e a quem o ama. E aproveitar-se das fraquezas dos outros é a única maneira de deixar de os servir para passar a ser servido.
“A ‘política’ de Kubrick é muito difícil de discernir, porque é muito ambígua”, explica Kolker. “Mas uma coisa é certa: o seu olhar sobre as classes é recorrente. Está perfeitamente consciente de que as classes existem e que há uma vontade de ir para além delas. Mas essa vontade falha sempre. Basta olhar para outras personagens: Johnny Clay [Sterling Hayden] em Um Roubo no Hipódromo (1956), que tenta dexiar a vida de criminoso e falha estrondosamente, William Harford [Tom Cruise] em De Olhos Bem Fechados, que se aventura fora da sua classe social, Jack Torrance [Jack Nicholson] em The Shining, um bêbado terrível que está convencido de que é escritor. E Barry Lyndon vê-se praticamente castrado no fim, naquele arrepiante freeze-frame que o encurrala no tempo.”
Barry confessa, perante o nosso olhar contemplativo, que sempre quis ser um gentleman, fazendo tudo para o conseguir numa sociedade que inventou a guerra e a corrupção. Palavras que nos lembram as de um outro sonhador: Henry Hill, em Tudo Bons Rapazes (1990, Martin Scorsese), quando este abre o filme dizendo: “As far back as I can remember, I always wanted to be a gangster.” O que disse Scorsese sobre Barry Lyndon, em 2001, em entrevista a Charlie Rose? “Acabo sempre por voltar a Barry Lyndon, e acho que é por ser uma experiência emocional profunda. A emoção na maneira como a câmara se move, a lentidão do ritmo, a maneira como as personagens se movem no espaço. (…) Por uma série de imagens requintadas e bonitas, somos testemunhas do caminho de um homem desde a mais pura inocência à sofisticação mais fria e um rancor absoluto. (…) É um filme assustador, porque toda aquela beleza à luz das velas não é mais do que um véu sobre a pior das crueldades. Uma crueldade verdadeira que vemos todos os dias na sociedade educada. As pessoas não perceberam o filme quando este saiu.”
Um filme sobre o presente, fora de época
Scorsese foi um dos responsáveis pela recuperação do filme, anos mais tarde, incluindo-o no documentário A Personal Journey with Martin Scorsese through American Movies (1995). Porém, 20 anos antes, a crítica não foi, de facto, tão meiga com o impiedoso retrato de Kubrick, apesar de a sociedade ainda estar mergulhada na guerra, na corrupção moral ou na obsessão da sobrevivência individual. No Guardian: “Uma visão sobre as coisas que parece totalmente indecifrável.” “Se cortarmos as piadas e a alegria a Tom Jones [1963, Terry Richardson] e virmos esse filme em câmara lenta, ficamos com algo muito parecido com Barry Lyndon”, escreveu a mítica crítica de cinema Pauline Kael. Andrew Sarris, não menos relevante no círculo, descreveu Barry Lyndon, no Village Voice, como “a meditação mais cara alguma vez financiada por um estúdio de Hollywood sobre a melancolia”.
Na Sight & Sound, confessa-se, em 1976, que “o filme parece uma lembrança de quão feio foi o séc. XVIII, tal como se vê nestas caricaturas inchadas de homens e mulheres a choramingarem na pocilga da sociedade”. Robert Kolker descreve-nos Barry Lyndon, hoje, como um filme desadequado do seu tempo: “Simplesmente não encontrou correspondência, é uma anomalia no cinema americano dos anos 70. Se pensarmos no período entre Bonnie and Clyde (1967) e Taxi Driver (1976), o público não está habituado ao ritmo hipnótico e cerimonial de Barry Lyndon. A maior parte das pessoas não conseguiu encaixar o ritmo e a duração. E, depois de Laranja Mecânica, esperava-se outra obra a alta velocidade de Kubrick.” Quanto aos críticos, “também eles estavam habituados a um ritmo próprio da época, e, quando aparece algo de diferente, há sempre uma resposta muito limitada”. “Só depois de Eyes Wide Shut é que se começou a repensar o trabalho de Kubrick”, e, hoje, “Barry Lyndon está rapidamente a substituir 2001 como a jóia da coroa da sua carreira”.
E em Portugal? O crítico Augusto M. Seabra relembra que “o filme estreou-se cá em 1977, em plena ressaca de um período político muito agudizado”. “É uma obra muito difícil para o período em que foi feito. Por um lado, no cinema europeu, existe uma grande radicalização, através de figuras emblemáticas como Godard e Straub, mas também Raul Ruiz e Marguerite Duras. Por outro lado, descobrimos, para grande espanto de alguma esquerda, que começa a haver entusiasmo com os dois Godfather [1972 e 1974, Francis Ford Coppola], O Tubarão [1975, Steven Spielberg] e outros filmes. Barry Lyndon parecia o exponente do que se chama a ‘qualidade britânica’, ficando-se com a interrogação de por que é que Kubrick tinha escolhido fazer aquele filme.” E acrescenta: “Existia, apesar de tudo, uma coerência entre Dr. Estranhoamor, 2001 e Laranja Mecânica. Barry Lyndon veio baralhar isso tudo.” O público, em Portugal, acabou por senti-lo como “um filme académico, conformista e burguês”, sem criar empatia com “um filme que parecia um álbum de imagens protagonizado por um dos actores mais cabotinos [Ryan O’Neal]”.
Foi também pelo documentário de Scorsese que Seabra redescobriu o filme. “Se me pedissem para escolher os melhores filmes dos anos 70, Barry Lyndon estaria lá de certeza absoluta.” E acrescenta uma das originalidades não entendidas à época: “A expressão written for the screen raras vezes teve tanto sentido como aqui. Há quatro filmes muito aproximados no tempo — Barry Lyndon, Amor de Perdição [1979, Manoel de Oliveira], e A Marquesa d’O [1976] e Perceval [1978] de Rohmer que são casos de estudo para como se filma um texto.” Curiosamente, quatro filmes ferozmente rejeitados pela crítica e o público, no seu ano de estreia, hoje considerados obras-primas.
“Não há dúvida de que Kubrick é um pessimista em relação ao destino da vida humana e em relação ao seu sucesso”, diz-nos Robert Kolker, acrescentado que Barry Lyndon, apesar de reconstituir o passado, fala-nos do presente. “Todos os artistas são sensíveis ao mundo à sua volta, e todos os que fazem filmes sobre o passado estão a fazer filmes sobre o presente. Não existe outra maneira.” Ou seja, pessoas derrotadas pelos rituais, construídos por si mesmos, que se repetem na história e que magoam os que estão à sua volta, vendo-se derrotados pela imprevisibilidade das suas emoções. Seja na Guerra dos Sete Anos (1756-1763), época da história do filme, como na Guerra do Vietname (1955-1975), que termina no ano da sua estreia. E se este acaba por ser o filme mais contemplativo de Kubrick, é por ser aquele em que o realizador nos diz, de forma mais clara e cinicamente bonita: olhem-se ao espelho e vejam.
“Não tenho dúvidas de que Stanley estava consciente do mal que nós fazíamos a nós próprios e que aceitava isso como um facto histórico”, confidencia-nos Jan Harlan. “Aliás, tenho saudades dos seus comentários e daquilo que ele teria dito sobre a resposta dos EUA e do Reino Unido ao 11 de Setembro — outro exemplo do mal auto-infligido por homens poderosos —, ou daquilo que teria dito sobre o 'Brexit'. A História repete-se constantemente.” E termina, dizendo: “Para algumas pessoas, Barry Lyndon era um filme demasiado longo. Mas o realizador era ele. E não vale a pena discutir com Marc Chagall se os burros realmente voam ou não”.