O horror do absoluto
Os que pensam ser a vida um bem absolutamente indisponível parecem querer dizer que o sofrimento que antecede a morte “natural” tem de ser aceite em quaisquer condições.
Consideremos a morte medicamente assistida (ou medicamente ajudada, em tradução mais genuína) como o conjunto excecional de ações (de prescrição e/ou de administração) praticadas por médico, eventualmente assessorado por outros profissionais de saúde, destinadas a antecipar a morte de pessoa, maior de idade, com capacidade para decidir, afetada por doença ou lesão incurável, cujo prognóstico de sobrevida possa ser razoavelmente fixado como inferior a 1 ano ou que se encontre em estado de total e irreversível dependência física, que as solicita de forma livre, voluntária, assertiva e consciente, movida por sofrimento físico ou psíquico que não queira mais aceitar, ou que, se estiver fisicamente incapacitada de se manifestar, o tenha previamente feito de modo claro e expresso numa Diretiva Antecipada de Vontade válida ou em instruções expressamente transmitidas por escrito a um Procurador de Cuidados de Saúde credenciado.
Vejamos estes atos médicos necessários à antecipação da morte, nos termos acima referidos, como só podendo ser concretizados depois de o médico, a quem a pessoa se dirija pedindo ajuda à antecipação da morte, ter obtido a concordância de um segundo médico (sempre que possível especializado na doença em causa) para conjuntamente subscreverem um documento que contenha a identificação completa da pessoa doente e dos seus subscritores, os fundamentos da anuência, as notas clínicas consideradas relevantes (como sejam os métodos e fármacos usados, o tempo entre o início do processo e o seu desfecho, os sintomas e ocorrências adversas), assim como a data e hora da verificação do óbito, cujo original deve ficar junto ao processo clínico ou, se não houver, ficar na posse do médico assistente, devendo o duplicado ser remetido, por um dos médicos subscritores, à Direção-Geral de Saúde (que elaborará um relatório anual).
Aceitemos que, em caso de dúvidas levantadas por familiares ou membros da equipa de saúde, os dois médicos, antes de prosseguirem, têm o dever de obter a concordância de um terceiro profissional, que deverá ser Psiquiatra ou Psicólogo, se as dúvidas se referirem a eventual perturbação psíquica que afete a capacidade da pessoa para tomar decisões, o qual igualmente deverá subscrever o referido documento, adicionando as notas clínicas que entenda relevantes.
A cumprirem-se estas disposições, podemos, segundo penso, afastar receios de derivas e dar por finda a atual criminalização de gestos misericordiosos ou compassivos realizados a título excecional. Os que pensam ser a vida um bem absolutamente indisponível e que, por isso, todos quantos se atrevam a satisfazer, nestas condições, um pedido de ajuda à antecipação da morte devem ser punidos com prisão, parecem querer dizer que o sofrimento que antecede a morte “natural” tem de ser aceite em quaisquer condições. Não é preciso estudar Direito ou ter acesso a uma biblioteca para ver o horror de uma tal atitude.
Neurologista aposentado