Limitar a capacidade de carga para preservar os valores naturais
Desafio quem já visitou a ilha Berlenga a imaginar-se por lá com 599 pessoas ao seu lado. Por mim passo. Para isso vou para Armação de Pêra que a água é mais quentinha e não enjoo no barco.
Todos os anos no início do Verão, muitas revistas e jornais por todo o mundo fazem reportagens especiais sobre os últimos lugares naturais por descobrir, apostando em forte nas praias. Por cá, a prática já leva alguns anos, o que faz com que estes lugares deixem de ser secretos e passem a estar cheios de gente. O último caso gritante que conheço é a Praia do Ribeiro do Cavalo, no concelho de Sesimbra. Apesar do acesso relativamente difícil e moroso, está agora completamente cheia de gente, a veranear, como em qualquer praia com infra-estruturas. Não há sítio onde pôr uma toalha e não faltam as geleiras e os chapéus-de-sol. O estacionamento, apesar de afastado, é totalmente desordenado e o lixo acumula-se, na praia e no caminho, pois a sua recolha é muito mais difícil.
Dois aspectos distinguem esta praia, como outras praias “secretas”, das praias “de massas”: o facto de ter muito pouca gente, e a sua beleza natural. Mas se é verdade que é positivo existirem cada vez mais pessoas interessadas na beleza natural destes locais, é igualmente verdade que o estado de conservação dos ecossistemas que sustentam essa beleza natural é dependente da densidade, neste caso do número de pessoas que frequentam o local ao mesmo tempo.
Este tema não é novo e as propostas de limitação de entradas, em geral por imposição de taxas turísticas, têm sido concretizadas com maior ou menor sucesso. O governo do Equador não abdica das receitas das taxas turísticas das ilhas Galápagos, tal como o governo argentino o faz para limitar a visitação ao glaciar Perito Moreno, na Patagónia. Mais perto, se quisermos mergulhar nas ilhas Medas, em Espanha, só o podemos fazer pagando uma taxa ao parque. Ao mesmo tempo que limitam a entrada, as receitas obtidas por estas taxas permitem que tudo continue a funcionar para não deixar morrer a galinha dos ovos de ouro, que neste caso é o património natural.
Por cá, a autoridade nacional com a tutela da conservação da natureza, o ICNF, tenta, mais uma vez, ordenar a entrada de turistas na ilha Berlenga, propondo o limite de 600 (sim, seiscentas) pessoas por dia. Desafio a quem já visitou a ilha a imaginar-se por lá com 599 pessoas ao seu lado. Por mim passo. Para isso vou para Armação de Pêra que a água é mais quentinha e não enjoo no barco. A medida é obviamente contestada por vários sectores, com receios de perda de receitas nos negócios locais, ou com argumentos que “muito há por fazer antes disso”. Se é certo que há muito por fazer, não quer dizer que uma medida efectiva de protecção dos valores naturais não deva ser já concretizada, ajudando até a que as que faltam possam ver a luz do dia. Além disso, duvido que qualquer actividade económica que viva dos valores naturais não pugne, em primeiro lugar, pela preservação desses mesmos valores naturais, sob risco de acabar.
Há dias fomos todos informados de o quadro A Adoração dos Magos, de Domingos Sequeira, já está no Museu Nacional da Arte Antiga, depois de uma inteligente campanha de angariação de fundos que o permitiu comprar “para ser de todos nós”. Mas, apesar de ser nosso, não nos passa pela cabeça que o museu não limite o número máximo de pessoas que o podem ver ao mesmo tempo. Além disso, cobra bilhetes, cujas receitas possibilitam que aquele património cultural perdure na nossa memória colectiva. Talvez um dia, o nosso património natural tenha a mesma sorte, ou então terá de esperar por campanhas de angariação de fundos para o recuperar.
Biólogo