A literatura e o amor segundo A Academia das Musas
Num tempo em que a literatura anda tão desprezada, a teoria do professor Pinto ou o filme de Guerín vêm combater esse desprezo.
Chegou há pouco ao público português o filme A Academia das Musas, apresentado em Lisboa pelo seu realizador, o catalão José Luis Guerín, que em 2015 concorreu com ele ao Festival de Locarno, e ao último Festival de Cinema Europeu de Sevilha, de que saiu vitorioso; nascido em Barcelona em 1960, Guerín já recebera outros prémios por vários dos seus documentários e longas-metragens, mas ainda é mal conhecido em Portugal, que dele pouco mais terá visto do que Comboio de Sombras (1997).
Como tantos outros filmes, A Academia das Musas obriga do princípio ao fim a reflectir sobre o amor, a paixão, o desejo, o ciúme, o sexo, a sedução, a relação masculino/feminino… No entanto distingue-se da generalidade dos filmes desde logo por ter um professor de literatura (e poeta, e filólogo) como protagonista absoluto e redondo – ou “opaco”, na qualificação do realizador, que também o definiu como “patético”, e que o contrastou com as “transparentes” alunas ou a sua mulher; e assinale-se que, num filme em que só entraram actores amadores, por sinal excelentes, o papel é assumido por um verdadeiro professor de literatura com o nome (em que a crítica brasileira poderá ver um sugestivo indício) de Raffaele Pinto, um italiano nascido em Nápoles e formado nas universidades de Nápoles e Pisa, mas que há muito ensina na Universidade de Barcelona matérias relacionadas com Dante, com a história da moderna literatura europeia, e com a psicanálise, o cinema e a literatura. Guerín leu a edição castelhana que ele preparou da Vita Nuova (onde em prosa e verso o jovem Dante falou da sua amada Beatriz), e um dia foi convidado a assistir aos seus seminários, assim surgindo a ideia do filme, em que entram como actores ou actrizes alunos ou alunas desses seminários e a professora de literatura catalã Rosa Delor Muns, colega do realizador, que no filme faz (e muito bem) o papel de sua esposa.
A Academia das Musas também se distingue claramente de outros filmes das últimas décadas protagonizados por escritores e poetas, como Nostalgia (Tarkovsky, 1983), O Carteiro e o Poeta (Michael Radford,1994), e Sylvia Plath – Paixão além das Palavras (Christine Jeffs, 2003), ou protagonizados por professores, como Uma Mente Brilhante (Ron Howard, 2001), A Onda (Dennis Gansel, 2008) e O Substituto (Tony Kaye, 2011). Mas não deixa de lembrar outro filme, O Clube dos Poetas Mortos (Peter Weir,1989), que tem como protagonista um professor de literatura (John Keating) com o mesmo objectivo do professor Raffaele Pinto: fazer com que os alunos, neste caso menos jovens e predominantemente do género feminino (nos diálogos académicos só uma vez se ouve, e rapidamente, um aluno) acedam a uma vida mais feliz e harmónica por intermédio da literatura ou da poesia; e, como o filme de Weir, o de Guerín também se vale dos códigos e do estilo dialógico e pedagógico, de tal modo que até favorece a ideia, que se tem sobretudo no início, de que estamos não perante um filme, uma ficção, mas perante um documentário, ideia ajudada pela relevância insistente dos grandes planos ou da técnica do campo/contracampo e pelo facto de nos confrontarmos com actores não profissionais, que podem revelar no filme algum traço biográfico e mantêm até o seu real nome próprio: Emmanuela, Carolina, Mireia, etc.
A aparente desimportância da acção, mau grado as passagens ou mudanças do tempo – cerca de meio ano escolar, dividido em períodos e intervalos, maiores ou menores, sinalizados por legendas – e as deslocações espaciais (Barcelona, o campus e a sala universitária, a rua, a casa do professor, o bar estudantil, Nápoles, o lago do Averno, a gruta da Sibila, a Sardenha, o quarto, o automóvel…) contrasta com o investimento excepcional na palavra, seja a oral dos aulas e das conversas, seja a escrita implicada nas referências literárias e poéticas (“Somos prisioneiros da linguagem” “A palavra basta-se a si mesma”, “A palavra tem uma força importante se a escreves”).
As palavras acompanham quase todas as imagens, chegando mesmo a aparecer em verdadeiras imagens de legendas idênticas às do cinema mudo, ou num grafito de gruta; e elas nem desaparecem quando as não ouvimos mas pressentimos nos lábios de personagens que vemos para lá dos vidros embaciados, ou com reflexos, num café ou num automóvel. Todo o filme é feito de diálogos, públicos ou privados – sobretudo em castelhano e em italiano, mas com algumas interferências do catalão, e até do sardo –, a muitas vozes (no anfiteatro universitário) ou só a duas ou a 3, entre o professor e uma ou mais alunas, entre o professor e a esposa, mas também entre duas ou mais alunas, entre uma aluna e o namorado, entre uma aluna e um pastor.
Na introdução teórica da aula inicial o professor começa por relacionar sem grande rigor a origem da vida humana ou da civilização com a música e a poesia, quer dizer: com a invenção da linguagem articulada. E em várias circunstâncias parece defender, como um empedernido filólogo, ou um leitor abusivo de John Austin, que a palavra vale como acção ou como o mais importante (se não o único) instrumento de acesso ao melhor conhecimento e à melhor experiência do mundo e do amor; por isso, apoia-se com frequência na literatura (Virgílio, os trovadores, Dante, Petrarca, Sannazaro, mas também Longo, Chrétien de Troyes, Garcilaso, Leopardi; o argumento denuncia o gosto ou a formação do professor italiano, que não contempla autores modernos salvo um poeta popular sardo) e vale-se de mitos, que se sabe que seduzem Guerín (o mito de Orfeu, o de Pã, o de Pigmaleão…), ou vale-se de figuras de ninfas (cujo nome e comportamento repercute – lembra - em “ninfomaníacas”) e de musas, sem nomear alguma das que se relacionam especialmente com a produção poética ou literária: Erato (poesia erótica), Euterpe (poesia lírica), Polímnia (poesia religiosa), Calíope (poesia épica), Melpomene (tragédia) e Tália (comédia).
Mas as referências literárias ou míticas apontam quase em exclusivo para a esfera da relação amorosa, sobretudo a do amor “proibido” e do amor-paixão: Orfeu e Eurídice, Apolo e Dafne, Dafne e Cloé, Lancelot e Genebra, Abelardo e Heloísa, Dante e Beatriz, Petrarca e Laura… E as musas não são verdadeiramente entidades instigadoras ou inspiradores da produção artística ou científica mas mágicas figuras femininas de um tempo primitivo ou antigo, livres e sedutoras, “que desejam e beijam” e não esperam que, desejadas, sejam beijadas. Com a evolução dos tempos, ou com a poesia e a paixão de Dante, diz o professor, as musas vieram a ser substituídas pelas mulheres de carne e osso, e só estas poderão desempenhar no mundo moderno um papel idêntico ao daquelas, opondo-se à decadência das práticas amorosas, que metaforicamente podem representar as outras práticas políticas ou sociais.
Não por acaso nem sem relevância, o professor Pinto fala quase só para e com alunas, que evidentemente não têm os seus conhecimentos literários ou culturais nem a sua experiência humana e que, podendo adiantar algumas objecções, também não podem valer-se de um imaginário de “musos”. Sob a aparência da valorização da mulher, e embora admitindo que qualquer indivíduo tem elementos masculinos e femininos, a teoria do professor, que se supõe de acordo com a sua prática, ainda que só uma sequência sugira alguma maior intimidade com uma aluna (saída do banho e quase ignorada por ele que… está a escrever um soneto supostamente inspirado por ela), não escapa a alguns equívocos passadistas, românticos e idealistas, ou machistas e egoístas sugeridos por duas alunas e pela esposa, que até o converte em sofisticado ou sabido sedutor de meninas inexperientes. Ele desculpa-se – “ensinar é seduzir”, “enamoro-me no interior de um ensino didáctico”, “o que nos separa é a liberdade e responsabilidade de ser fiel a si mesmo”, “o meu amor e o meu desejo são orientados” – e avança mesmo com esta falsa pérola: “sou possessivo numa perspectiva metodológica”.
Num tempo em que a literatura anda tão desprezada, a teoria do professor Pinto ou o filme de Guerín vêm combater esse desprezo, garantindo que não há poesia sem amor ou amor sem poesia, que a literatura “é uma religião”, que “o amor é uma invenção da literatura” e que sem amor, sem poesia, seremos todos mortos ambulantes. Mas essa teoria também é combatida ou contrariada no filme, quando o mesmo professor define a poesia como um diálogo com os mortos (ecoando sem o dizer o célebre verso de Eliot: “cada poema é um epitáfio”) e quando põe em causa o valor salvífico da palavra e da literatura, na queixa de uma aluna que só comunicava com o namorado pela internet ou pelo telefone, “eu só tinha palavras”, ou na confissão de outra aluna: “A literatura não quero lê-la, quero vivê-la”. Aliás, a importância que o professor concede à literatura clássica, e até à forma fixa e à rima, também é contestada por uma aluna que defende a poesia moderna e a vantagem ou o direito do verso livre.
A oposição entre o antigo e o moderno, como a oposição entre a cidade ou o campus universitário e o campo dos pastores da Sardenha, que convocam a memória da harmonia arcádica mas também o valor do silêncio, dos ruídos dos animais, do sopro dos ventos ou da música das flautas, dão-se no interior de uma oposição maior entre a cultura e a natureza, entre a literatura e o real, ou entre os ideais da plenitude amorosa, convocados pela grande literatura, e as asperezas e os limites que na prática individual e social a impedem.
O filme de Guerín começa por favorecer a ideia de uma coincidência possível entre a literatura e a vida, entre a grande poesia e o grande amor, mas acaba por sugerir a existência de falhas ou fissuras dramáticas e de trágicas decepções: a plenitude amorosa é sempre uma ideia ou representação a posteriori; a grande literatura ou arte, como a de Orfeu, nem mesmo quando celebra o amor sublime deixa de remeter para a morte, “tudo corre para a morte”; a perseguida unidade está sempre a confrontar-se com a duplicidade; a poesia passou a “cantar a doença” do sujeito condenado à solidão; e até a suposta autoridade do professor é desmoralizada por uma aluna e sobretudo pela sua mulher, que o acusa de ter uma “vida dupla”.
Claro que A Academia das Musas não é um documentário nem é um ensaio. É na verdade uma ficção centrada no mundo académico – não exactamente como o de Platão (que criou a primeira academia), e muito menos como o de Sócrates (“Tu não és Sócrates” – clama a mulher de Pinto) - onde se questiona ou problematiza a relação da literatura e do amor, e a importância do ensino ou da aprendizagem de uma e de outro, de uma com o outro, e vice-versa. Trata-se afinal de um filme que vem inscrever-se na já muito antiga e longa lista de obras que de modo não ensaístico mas fictivo e coloquial se empenham no conhecimento ou no esclarecimento dos enigmas do amor, dos afectos e das pulsões que comandam as relações humanas, e que encontram a sua mais clara e expressiva representação na literatura.
Às vezes sofisticados, às vezes errantes e pontuados por sofismas, os diálogos de amor do filme de Guerín, que tanto apelam para a literatura clássica, talvez tivessem lucrado com a leitura ou a referência de Camões (“Amor é fogo que arde”…; “E sabei que, segundo o amor tiverdes, / Tereis o entendimento de meus versos”) e de Leão Hebreu, o judeu português que, no início do século XVI, escreveu os Diálogos de Amor – um tratado de amor que “enchia as medidas” de Cervantes e que por sinal foi pela primeira vez publicado, postumamente, em 1535, na língua materna do professor Raffaele Pinto.
Poeta e ensaísta