Fala o pobre

Dizem que fomos nós, os preguiçosos, os gulosos do Sul, quem fez gorar o projecto da coisa. Por mim, pequena portuguesa, dou o exemplo: vou buscar o esfregão e a vassoura, antes que algum refugiado mos cobice.

O bem mais precioso que existe em Portugal circula a céu aberto, às mãos de todos. É o poema épico Os Lusíadas, escrito por Camões no século XVI. A arrogância lusitana que o inspira apaga-se perante a beleza dos versos e a claridade renascentista que o autor recebera por instrução e vida. Curiosamente, os alemães de oitocentos dedicaram-lhe várias traduções, admirando aquele modo grandioso e escorreito de fixar a memória e a história da nação como se fossem uma e a mesma coisa. E, na verdade, sem um texto assim, talvez nem existisse Portugal.

No Canto III, é feita a apresentação geográfica do pequeno país: "Eis aqui, quase cume da cabeça da Europa toda, o reino lusitano". E há, de facto, no recorte litoral, o traçado de um rosto de perfil. E o corpo europeu sai, deformado, da nobreza cimeira, onde começa o mar e a terra acaba.

De há uns tempos para cá, porém, abundam títulos anunciando que Portugal se encontra "na cauda da Europa". Como se entre o poema e os dias de hoje o animal assim configurado se tivesse virado para o sentido oposto. Estamos realmente, em tudo, atrás de todos. Um pouco mais desse recuo atiraria connosco para fora do desenho. 

Do mal, o menos. Antes do 25 de Abril de 1974 nem sequer nos achávamos na cauda da Europa: estávamos, sim, nos subterrâneos, sem a vermos. De vez em quando, alguém a alcançava, fugindo às variadas instâncias de polícia que iam mudando o nome mas não a crueldade. Assim, fugiram os judeus, fugiram sábios, académicos, médicos, cientistas que, entre os altos espíritos da Europa, tomaram com justiça os seus lugares. Escritores respiraram o ar fresco das grandes literaturas românticas, realistas, e trouxeram de volta requintes e ideias. Em Paris, onde tudo sucedia, poetas e pintores pousavam malas. A Europa era o "lá fora" e era tudo. 

Veio o salazarismo e esmagou com os pés, durante cinquenta anos, todas as nucas que tentassem levantar-se. Não eram pés calçados em botas cujo estrondo levava o horror aos próprios buracos das toupeiras. O inquisidor usava sapatinhos de padre ou de funcionário das Finanças que eram discretos na aproximação. Pensava tanto no agrado da Igreja como na salvação do seu regime. Não tinha suficiente teoria mas também não sentia a falta dela. Ao longo desse tempo prosseguiu a viagem clandestina para a Europa. A elite política e intelectual, os camponeses transformados em pedreiros, os desertores da guerra colonial: a mente pensadora, o braço activo, tudo jorrando como jorra o sangue, sem uma esperança de voltar à veia, construíam cidades uns, sonhos políticos os outros.

Gasto mais de metade do meu espaço para falar do passado quando esperam que fale do futuro. Mas tinha de explicar que nunca fomos plenamente europeus. E, quando finalmente nos calhou a Europa em sorte, porque nos encontrávamos, já de pleno direito, ao mesmo nível dela, pedimos a desforra da pobreza e como pobres nos denunciámos. A excelência do projecto transformava-se no dom de Midas, naquele excesso de ouro que impede o homem de se alimentar. A conta veio. Não vem sempre a conta? Pois tudo se passava no domínio do crédito e da dívida. E a gente sabe que isso acaba sempre exactamente como começou, se não até em escravidão e suicídios: escravizada e auto-imolada está a Grécia. 

A Europa consegue este prodígio: sem existir, tem a existência ameaçada. Sem homogeneidade que a defina, vê tremer o que nela é homogéneo, os direitos humanos, a dignidade e a liberdade, já que da igualdade e da fraternidade aguardamos ainda a vinda messiânica. Posta em desequilíbrio, impreparada para dar combate aos velhos-novos inimigos que, sendo tudo aquilo que já fomos, exterminadores a mando de palavras divinas, e sendo tudo aquilo que hoje somos, internautas capazes de atravessar paredes, dificilmente se distinguem dos vizinhos cujas crianças brincam com as nossas.

Desejos que pareciam repugnantes como a expulsão daquele que é estranho ao nosso clã sobem do cérebro reptiliano até à fronte e ali inscrevem novamente uma brutalidade primitiva que, confessemos, preservou o género humano: o egoísmo da sobrevivência. Pois é a vida, a física e do espírito, o que está a correr um grande risco aqui.

A ironia da História é que podemos fazer tudo o que sempre desejámos, manifestar, falar, votar e debater, respeitar o diferente, instituir os cuidados gratuitos, isto é, ser cidadão num Estado de confiança e representação. Festejámos demais, dançámos muito, os que estavam na classe dos criados passaram num abuso para os salões?

Dizem que fomos nós, os preguiçosos, os gulosos do Sul, quem fez gorar o projecto da coisa. Por mim, pequena portuguesa, dou o exemplo: vou buscar o esfregão e a vassoura, antes que algum refugiado mos cobice.

Escritora

Este texto, escrito a propósito da Europa, foi publicado originalmente no diário austríaco Der Standard, na edição de 20 de Junho

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