Justiça criminal e igualdade
À vista das marcas de selecção e desigualdade, nem o mais panglóssico crente pode confiar na igualdade fáctica da justiça criminal.
1. Pergunta-se se “podemos confiar que a justiça trata da mesma forma ricos e pobres”. Reduzida à sua expressão mais simples e cortante, a resposta só pode ser negativa.
Tanto a nível individual como colectivo, a confiança assenta na conjugação de momentos distintos: coeficientes cognitivos e emotivo/volitivos (também confiamos porque queremos confiar); lições da razão e lugares da crença; juízos analíticos e “interesses cognitivos”; conclusões racionalmente sustentadas e juízos pré-compreensivos. Por definição, a confiança projecta-se sobre factos ou coisas marcados por lastros de incerteza e contingência. Por ser assim, a confiança comporta sempre um risco. O risco associado a uma realidade que não é possível antecipar, menos dominar, com segurança. Não se confia contra a evidência. Numa tarde de céu fechado, de chuva a cair plácida e monótona, não se confia que, um instante volvido, o sol brilhará no céu diáfano. Reversamente, não faz o menor sentido confiar que a chuva está a cair.
Aqui na questão criminal: à vista das marcas de selecção e desigualdade, nem o mais panglóssico crente pode confiar na igualdade fáctica da justiça criminal.
2. Por definição, a justiça tem como dimensão irredutível a igualdade. E é este conceito arquetípico de justiça — tendo como reverso a igualdade — que vem assistindo à marcha da civilização, permanentemente presente no horizonte da Humanidade e aspirando à validade e vigência perenes e a-históricas. É uma ideia que é possível colher nos primórdios da civilização, que aflora em pensadores como Sólon ou Platão e surge decantada nos autores mais celebrados dos nossos dias.
A verdade é que aquela justiça arquetípica tem conhecido formas diferentes de expressão e de actualização na justiça “real” que acompanha os trabalhos e os dias. Muitas das suas concretizações históricas só poderiam colher, à luz das representações e exigências actuais, o mais veemente repúdio.
Tal vale paradigmaticamente para a justiça do ancien regime, desigual por essência e vocação, a segregar soluções irreconciliavelmente opostas para fidalgos e plebeus. Como vale para a justiça deixada na praia pelas ondas revolucionárias do iluminismo e do liberalismo, a sancionar e legitimar tratamentos extremadamente desiguais para possidentes e deserdados. De novo apenas a forma, mais larvada e latente mas nem por isso menos real, da desigualdade.
Mesmo no contexto iluminado e narcisista da modernidade persistem ponderosos e irritantes coeficientes de desigualdade. Presentes no corpo e na alma da lei, depois multiplicados e amplificados às mãos dos aplicadores (polícias, MP, Tribunais e sistema prisional).
Fazer leis continua a ser expressão de poder. Que uns (poucos) têm outros (muitos) não. Quem faz leis propende a criminalizar o comportamento do outro e a levar o seu à constelação das virtudes mais resplandecentes. E porque poder era o reverso de ter, fazia o seu curso a equação: classes laboriosas/classes perigosas/ classes criminosas. E era a olhar privilegiadamente para elas que eram escritas as leis criminais. Que raramente atingiam as condutas anti-sociais das classes privilegiadas, mantidas no limbo das acções menos “próprias” ou “convenientes”, meros Kavaliersdelikte, que não deviam, em qualquer caso, atrair sobre si o estigma e o opróbrio do “verdadeiro” crime. Normalmente toleradas, mesmo aceites como invejáveis credenciais de excelência. Do género: “pagar impostos é sinal de estupidez, fugir é sinal de inteligência”. Uma desigualdade replicada e multiplicada na hora da aplicação. Onde ganhava peso a competência diferencial para resistir à intromissão e devassa das instâncias formais de controlo. Que acabavam por seleccionar, no contingente do costume, os “clientes” do costume, recrutados em função de difusos, mas arreigados e poderosos, estereótipos sobre “o” criminoso. Identificado pela imagem exterior — indumentária, tipo de cabelo e de barba, forma e dimensão dos malares, eixos craniológicos, tipo anátomo-morfológico, etc. Recorda-se que a primeira “teoria” criminológica (LOMBROSO) associava as “causas” do crime a estes estigmas morfológicos.
Tudo a projectar-se sobre a realização da justiça: a verdade é que eram estes, quase só estes, que enchiam as prisões. Nas representações dominantes só eles eram perigosos, só eles careciam de pena, só eles reclamavam prevenção.
3. As coisas alteraram-se significativamente a partir dos anos sessenta do século passado, com progressos assinaláveis na direcção da igualdade. Sem prejuízo, persistem patentes e “irritantes” marcadores de selecção e desigualdade.
O advento do Estado Social estendeu a mancha da criminalização a áreas até então insuspeitadas. E aparecem os crimes contra a economia, contra o Fisco, a saúde pública, o ambiente, a Segurança Social, o mercado de valores mobiliários, a concorrência, etc, normalmente associados a agentes de fortuna, poder e influência. Ao mesmo tempo, a criminologia do white-colar crime e as investigações por ela estimuladas puseram a descoberto que o crime se distribui em termos e números sensivelmente idênticos por ricos e pobres, anónimos e “figuras da história do tempo”, ruas escuras e bairros elegantes. As mudanças atingiram também o imaginário colectivo: o estereótipo do criminoso alberga também os detentores de poder e fortuna. De repente, multiplicaram-se os casos em que a máquina da perseguição e repressão penal mobiliza o seu arsenal contra políticos, executivos, quadros superiores da Administração e das empresas. Tudo sob a vigilância e o ruído dos media, o pelourinho dos novos criminosos.
E, todavia, continuamos longe dos patamares de igualdade consonantes como a ideia de justiça. Em grande medida, as prisões continuam a ser exclusivo dos criminosos de antigamente. Ontem como hoje, o sistema penal continua a “escolher” aqueles a que empresta a máscara, adscreve o papel e dispensa o tratamento de criminoso. Na certeza de que nada disto é neutro ou inócuo. Quem sofre este tratamento acaba por ver o estigma e a identidade de criminoso colados à pele. Muitos acabarão por regressar à prisão de que um dia saíram. E aí completarão a “aprendizagem” e a aquisição de novas “competências” para subir na “carreira” do crime. Ontem como hoje, o sistema penal continua a produzir e reproduzir os seus “clientes”, numa espiral incontrolável de mais e mais grave criminalidade.
4. E agora a conclusão. Reconhecidamente paradoxal, aparentemente contraditória. Sendo verdade que não podemos confiar num tratamento igual, não é menos verdade que temos de confiar na igualdade da justiça. Temos de confiar na possibilidade de, contínua e progressivamente, fazer subir os limiares de igualdade na realização da justiça. No que vai contido um programa de reivindicação e de reforma, que convoca todos os intervenientes: detentores do privilégio de ditar as leis; instâncias que têm a responsabilidade de as aplicar; cultores da ciência jurídica, a sindicar a bondade das leis e a correcção das decisões; media a fazer circular as notícias e as emoções entre o crime e o consciente colectivo; destinatários (das leis e das decisões), a comunidade no seu conjunto. A quem cabe reconhecer as leis e aceitar as decisões e, nessa medida, legitimar o sistema de justiça e sinalizar a confiança.
Na certeza de que justiça, igualdade e confiança estão indissociavelmente vinculadas e interdependentes. Sem igualdade não há justiça nem confiança. Sem confiança não há justiça, mas a fuga para sistemas informais e fácticos de superação dos conflitos. O reino onde as diferenças de meios se multiplicam em desigualdade.
Professor da Faculdade de Direito de Coimbra