Noventa milhas e quase 90 anos

Cuba celebra a visita de um Presidente dos Estados Unidos a um país soberano e orgulhoso da sua História.

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Bandeira dos EUA em Havana Reuters

Há quase 90 anos que um presidente norte-americano não visitava Cuba. A chegada de Barack Obama a Havana é, por isso, simbólica a todos os níveis. Não só porque muitos desses anos representam as mais de cinco décadas de revolução que em 1959 mudou o destino da ilha, com o consequente bloqueio económico. Mas também porque a ausência de visitas diplomáticas reflecte a longa relação de amor-ódio entre Cuba e os EUA, e sobretudo a forma como os EUA sempre olharam para Cuba.

A visita é portanto histórica, porque, para os cubanos, mostra que finalmente os EUA se renderam às evidências. Primeira e óbvia: a evidência de que o mundo herdado da Guerra Fria acabou e que a inclusão de Cuba no “Eixo do Mal” de Bush Jr., em 2002, foi uma decisão profundamente anacrónica, para não dizer ridícula. A segunda: de que o embargo de 57 anos não fez colapsar o sistema cubano, que conseguiu a muitos níveis apresentar indicadores de desenvolvimento humano de que os próprios EUA se poderiam envergonhar (no acesso à saúde, por exemplo). Finalmente, a evidência de que a política arrogante dos EUA, recrudescendo o próprio bloqueio quando Presidentes republicanos tomavam o poder, para agradarem à elite (reaccionária, até) de exilados cubanos na Florida, tem os dias contados.

Para Cuba, é uma vitória. Independentemente das pressões dos dissidentes, das cartas das Damas de Branco, do mau-humor dos velhos republicanos, do medo aos Castro, Obama vem mostrar que finalmente os EUA perceberam que podem ter um importante interlocutor regional em Cuba, estabelecendo um diálogo que muitos cubanos exigem que seja de igual para igual (e não de Golias para David), em desenvolvimento económico, abertura democrática, segurança, direitos humanos e investigação científica – outra evidência a que os EUA se estão a render está no impressionante nível científico em Cuba, sobretudo em medicina e farmacêutica, e universidades norte-americanas há muito que pedem mais abertura ao Governo para colaborar em investigação.

Mas é sobretudo uma vitória para os cubanos, dentro e fora da ilha, hoje, fartos da velha guarda que, dos dois lados do estreito, continua abraçada a um tempo que não existe mais. As 90 milhas que os separam serão poucas para todos aqueles que vão agora poder viajar, visitar a família, fazer férias, frequentar cursos universitários (tanto nos EUA como em Cuba), sem que sejam considerados potenciais gusanos (dissidentes), uns, ou castristas, outros.

De Cuba, a visita é encarada com uma histeria colectiva, até porque Obama é, depois de Jimmy Carter, o Presidente americano mais amado na ilha. Mas há uma velha desconfiança: porque ao abraço do gigante seguiu-se sempre a mão de ferro da ideologia, e os cubanos sabem-no. O bloqueio não acabará para já, até porque Raúl Castro estará no poder até 2018. E há eleições nos EUA no próximo Outono. Apesar das notícias sobre americanos a “salivar” com a possibilidade de investimento, Cuba não tem infra-estrutura para uma “invasão” e, portanto, caberá ao regime controlar esse ímpeto e, dentro da abertura a investimento estrangeiro (substancial na última década), manter os seus níveis de desenvolvimento humano. Os cubanos continuam a reclamar por melhores transportes, melhores serviços, aumento dos salários, o fim das duas moedas e receiam inflação, aumento da desigualdade e insegurança.

Certo é que a Cuba que hoje celebra este momento histórico tem a cabeça levantada. E mesmo aqueles que anseiam por mudança no poder, que conspiram contra o regime ou pedem até uma intervenção norte-americana, mesmo esses sabem que esta é a visita de um Presidente dos EUA a um país soberano e orgulhoso da sua história. E que se houve alguma conquista desta revolução, ela está na certeza de que Cuba, ao contrário de muitos países da região, nunca se rendeu e conseguiu construir uma identidade nacional coesa. Por isso, os cubanos também dizem: não se perguntem só o que os americanos podem fazer por nós, mas o que nós podemos ensinar aos americanos.

Raquel Ribeiro é escritora e jornalista, professora da Universidade de Edimburgo e membro do Cuba Research Forum; é autora do romance Este Samba no Escuro

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