Curioso expressionismo da tecnologia minimal
Nevoeiro é um espectáculo mais robusto pela sua harmonia formal e mais frágil pelos seus sentidos nebulosos.
A grande cortina que, à boca de cena, impõe literalmente uma quarta parede a fechar o palco neste espectáculo de Luís Guerra funciona, afinal, como um ecrã de TV. É por causa do rectângulo interior prateado, circunscrito por um rebordo opaco preto, que se deduz esta função, mas ela também opera tecnicamente porque os bailarinos actuam iluminados, dentro dessa caixa, sublinhando a possibilidade de acesso a um mundo paralelo que eles incorporam.
Este dispositivo cénico é engenhoso e muito eficaz. Facilita a expressão de uma componente recorrente no trabalho do coreógrafo – a de um outro mundo -; reflecte a depuração inerente nesta peça e permite interpretá-la, livremente, como representação do ser humano e da inteligência artificial do século XXI, com a sua mistura do físico e do virtual, promíscua e arriscada, mas excitante e visualmente rica.
Na primeira parte os quatro bailarinos trabalham, em ritmo muito acelerado, uma frase comum feita de uma vintena de fragmentos – posturas, gestos e movimentos - e com ela irão atravessar progressivamente, sempre de frente para nós, o palco da esquerda para a direita. Gráficos de um monitor de sinais vitais, bytes em reorganização contínua que descodificam informação ou empregados da indústria de produção em massa, estes bailarinos são exímios na sua precisão, linearidade e ataque a todos os detalhes. São corpos muito firmes que produzem uma cativante força minimal-expressionista, com uma beleza do tipo maquinal, que as caras e a pele à vista humanizam.
Aderir ao embalo hipnotizante da música ininterrupta – que começa antes de o público entrar e se mantém até todos abandonarem a plateia - não é óbvio. É preciso disponibilidade para aceitar o convite à contemplação latente em Nevoeiro, mas a imersão numa ficção evocada, que pauta pela harmonia formal, poderá ser compensadora.
A segunda secção propicia um estado meditativo que contrasta, absolutamente, com a energia que vinha de trás e frustrará, nesse sentido, qualquer expectativa de entretenimento instalada nos espectadores. Sentimos as referências tecnológicas pela presença das cores primárias dos ecrãs – em vez de leggings justas e coloridas, agora são três corpos de cara coberta que nos olham sob as luzes que os tingem: um de vermelho, um de verde e outro de azul. Porém a acção, de seres que parecem impotentes num cenário apocalíptico de autodestruição, é míngua e lentíssima.
Acordamos dessa visão com a vinda dos bailarinos para fora do ecrã e sob uma luz ofuscante. De novo dispostos para o público, os quatro agora organizam-se numa linha perpendicular e transitam entre posições físicas de reverência, de vaidade e de cogitação - um comportamento nada estranho aos tiques de sedução das celebridades mediáticas, mas dificilmente contextualizado pelos blocos anteriores.
Este Nevoeiro tem um interessante e bem conseguido alinhamento de materiais, com uma qualidade de execução evidente. Contudo, padece de uma relação menos positiva com as implicações do seu título: o convite ao transe pode tornar-se um aborrecimento e os seus quadros de um mundo ficcional não desenvolvido remetem a uma não-acção com sentido nebuloso.