A Madeira é um jardim, até debaixo de água

A Câmara do Funchal está a concluir a definição de uma estratégia para o turismo e elegeu o mar como prioridade. Através da Estação de Biologia Marinha, a autarquia aposta na investigação científica e na protecção e promoção dos seus tesouros subaquáticos. O PÚBLICO mergulhou para os conhecer.

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Um passo de gigante. Parece difícil mas não é: basta vestir o equipamento de mergulho, encher o colete de ar, dar um passo largo em frente e deixar cair o corpo na água quase morna, a 21 graus, mesmo no Outono. Depois, é dar às barbatanas e seguir de olhos bem atentos aos ouriços de espinhos longos assentes nas rochas, aos cardumes prateados que reluzem no meio do azul e aos peixes-rei curiosos que quase se deixam tocar.

Finalmente, nos buracos das rochas e entre um amontoado de betão que serve de recife artificial, lá estão elas com a cabeça à espreita – parecem cobras, de boca aberta a mostrarem os dentes afiados para assustar os predadores – a confirmar o nome pelo qual é conhecido o lugar: Baixa das Moreias. Com acesso através das instalações do Clube Naval do Funchal, que tem um centro de mergulho, este é um dos locais mais procurados pelos mergulhadores que visitam a capital madeirense. O fundo é forrado por escoadas de lava, em desfiladeiros que vão desde a linha de costa até aos 22 metros de profundidade.

Moreias pretas, pintadas, serpentes e moreões residem quietos (pelo menos durante o dia, já que à noite saem para caçar) nas reentrâncias rochosas. Mas não estão sozinhos neste “aquário” gigante, povoado de castanhetas, sargos, bodiões, estrelas do mar, trompetas, garoupas, peixes-lagartos, salemas e salmonetes de bigodes compridos à procura de comida na areia escura. Quando a visibilidade melhora e a luz consegue entrar, despontam esponjas amarelas, anémonas coloridas com os tentáculos a ondular ao sabor da corrente, gorgónias e outros corais, algas e búzios. É um verdadeiro jardim no fundo do mar.

A Baixa das Moreias foi o primeiro percurso subaquático criado na Madeira, em 2013. Desde então foram definidos mais três – Baixa do Carneiro, Ilhéu do Gorgulho e Baixa Larga –, todos na área do Ecoparque Marinho do Funchal, uma faixa litoral delimitada entre a Baixa Larga e a Ponta da Cruz, desde terra até 30 metros de profundidade, aos pés de uma das zonas da capital madeirense com maior número de empreendimentos turísticos. Em cada um dos percursos foi instalado um cabo, assente no fundo, que guia os mergulhadores pelos pontos mais interessantes.

Com estes percursos, a Câmara do Funchal espera conseguir “recuperar a ligação da cidade e das pessoas com o mar”, que o presidente da autarquia considera ter-se “perdido” nos últimos anos. O executivo liderado por Paulo Cafôfo está a elaborar uma estratégia para o turismo e o mar é uma das principais apostas. Um primeiro passo foi dado em Agosto passado, com a criação da primeira praia do país para invisuais. Mas ainda há muito por fazer.

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Reserva marinha é “prioritária”

“Poderá haver aqui um nicho de mercado muito importante”, considera o autarca independente eleito em 2013 pela coligação Mudança (PS, BE, PND, MPT, PTP e PAN). Para explorar esse potencial, o município pretende avançar com a classificação do ecoparque como área marinha protegida de interesse local e ficar responsável pela respectiva gestão, mas está ainda à espera da aprovação pelo Governo Regional. “Do ponto de vista estratégico, isto é prioritário para nós”, sublinha, defendendo que a reserva “não é incompatível com actividades turísticas”.

O município é um dos poucos do país com um departamento dedicado em exclusivo à ciência e aos recursos naturais, e dedica anualmente cerca de um milhão de euros à área da Ciência, investindo 15% desse valor em investigação e desenvolvimento.

Para Paulo Cafôfo, a classificação do ecoparque é “fundamental” para aprofundar o estudo de todas as espécies que residem naquele ecossistema, uma tarefa que cabe aos investigadores da Estação de Biologia Marinha. Este equipamento, criado há 16 anos como extensão do Museu de História Natural da cidade, e financiado pelo município em cerca de 100.000 euros por ano, será a sede da reserva do Ecoparque Marinho.

No edifício de seis pisos construído no Cais do Carvão, em plena Promenade da Orla Marítima do Funchal, estão guardados mais de 50 mil exemplares de peixes, crustáceos e moluscos – nalguns casos com mais do que um exemplar de cada espécie – distribuídos por laboratórios repletos de tanques e prateleiras com frascos de vidro. Ali está uma parte significativa do património natural da Madeira.

“Os peixes e tubarões que dão à costa são trazidos para aqui, onde é analisada a origem, a longevidade e a dieta de cada espécie”, exemplifica Mafalda Freitas, bióloga marinha e directora da estação. Foi o que aconteceu com o enorme peixe-lua que deu à costa em Abril, por exemplo. E com um tubarão duende, uma espécie rara de águas profundas. “Existem apenas 15 exemplares conservados em todo o mundo”, explica a especialista em tubarões e raias de profundidade. Foi necessário construir um tanque com seis metros de comprimento para guardar a carcaça.

Além da equipa de Biologia Marinha do Departamento de Ciência da autarquia, tutelado pela vice-presidente e vereadora Idalina Perestrelo, também os investigadores do Laboratório de Biologia Marinha e Oceanografia da Universidade da Madeira desenvolvem ali os seus trabalhos. Os cientistas dedicam-se à identificação de espécies marinhas e à respectiva monitorização. Todos os meses, mergulham no Atlântico para anotar eventuais alterações. “Por exemplo, com o aumento da temperatura da água, têm surgido espécies diferentes, como a castanheta mais comum no Mar Vermelho”, afirma Mafalda Freitas.

Através de parcerias com privados, os investigadores têm-se dedicado ao estudo dos espadins, em particular à migração do espadim azul, espécie muito procurada para a pesca grossa, com fins desportivos. “Utilizamos marcadores biológicos com transmissores de satélite, que permitem conhecer pormenores sobre as longas viagens destes peixes”, conta a directora. Os resultados desta e de outras iniciativas são mostrados à população através de exposições, palestras, visitas guiadas. Na última segunda-feira de cada mês, a estação está de portas abertas para quem quiser conhecer o trabalho que lá se faz.

Uma despensa recheada

A Estação de Biologia Marinha está também vocacionada para a investigação de espécies de águas profundas, e tem participado em vários projectos relacionados com os recursos do arquipélago da Madeira e também dos Açores, Canárias e Cabo Verde.

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Entre 2003 e 2008, a estação foi uma das seis entidades envolvidas no projecto Pescprof, cujo objectivo foi avaliar, pela primeira vez, os recursos pesqueiros entre os 200 metros e os 3000 metros de profundidade na zona da Macaronésia (Madeira, Açores e Canárias). Entre 2009 e 2013, integrou a equipa do Marprof – Bases para a Gestão e Valorização Gastronómica de Espécies Pesqueiras Profundas da Macaronésia, um projecto orçado em 836 mil euros (co-financiado a 85% por fundos comunitários).

Os cientistas realizaram campanhas em alto mar para prospecção de novas espécies e estudo do peixe-espada preto, um dos ex-libris da gastronomia madeirense. Descobriram no Atlântico uma autêntica despensa recheada de recursos ainda por explorar e que podem constituir alternativas na ementa dos ilhéus e do milhão de turistas que visita o arquipélago anualmente.

Segundo Mafalda Freitas, foram descobertas mais de 20 espécies novas para a Madeira. O destaque vai para a gamba-da-Madeira (ou camarão-eduardo, que se encontra entre os 200 e os 400 metros de profundidade) e para o caranguejo de fundura (entre os 600 e os 1000 metros), que existem em abundância no Atlântico. Em relação à gamba, as estimativas dos investigadores apontam para uma exploração anual sustentável de 10, 88 e 80 toneladas (respectivamente, na Madeira, nos Açores e nas Canárias) com recurso a métodos inovadores testados durante as campanhas, como covos-flutuantes.

Destes projectos resultaram recomendações à frota pesqueira para que aposte na captura sustentável destas espécies de elevado valor comercial. Por exemplo, só nas Canárias, as receitas brutas da pesca da gamba-da-Madeira poderão chegar aos dois milhões de euros anuais. “As nossas águas têm até 5500 metros de profundidade e por isso existe um grande potencial ainda por explorar”, sublinha a bióloga.

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Para mostrar que é possível introduzir estas espécies nas ementas regionais sem fugir à cozinha tradicional foi lançado um livro de receitas com o apoio de escolas de hotelaria dos três arquipélagos, incluindo informação biológica e nutricional. Numa edição de 200 páginas são sugeridas 50 receitas: gamba-da-Madeira com véu de presunto e molho de açafrão das Canárias, caranguejo-da-fundura com aroma de manga ao perfume de vinho da Madeira, ou fragateira de congro à moda de Câmara de Lobos são apenas alguns exemplos.

O passo seguinte é “casar” os recursos marinhos e o conhecimento científico com a gastronomia e o turismo, num projecto designado Macarofood, através de parcerias com instituições e empresas. Segundo Mafalda Freitas, esta iniciativa será lançada em 2016.

Baixas, naufrágios e encontros com focas-monge

Além dos quatro percursos assinalados no Ecoparque Marinho do Funchal, existem no arquipélago perto de três dezenas de locais identificados para a prática do mergulho autónomo, não só na ilha da Madeira mas também em Porto Santo e nas Ilhas Desertas.

Para principiantes ou simplesmente para quem pretende fazer mergulhos pouco profundos, não faltam zonas baixas repletas de vida, como as 3 Marias, a Baixa da Cruz ou a Baixa do Lobo. A maior parte é acessível a partir de terra.

Existem também algumas embarcações afundadas ao longo da costa, por acidente ou de forma intencional, visitáveis pelos mergulhadores. Um dos naufrágios mais conhecidos é o do navio Madeirense, que fazia a travessia entre a ilha da Madeira e Porto Santo até ser afundado em 2000 numa baía inserida na Rede de Áreas Marinhas Protegidas de Porto Santo, onde se transformou num recife artificial assente a 34 metros de profundidade.

O arquipélago tem várias reservas marinhas onde é permitida a prática do mergulho. Uma das mais procuradas é a Reserva Natural do Garajau, que proporciona um mergulho até cerca de 20 metros de profundidade, a menos de 100 metros da costa. Ali, como em muitos outros locais do arquipélago, os meros – enormes peixes de olhos salientes e “lábios” grossos, curiosos e normalmente amistosos com os mergulhadores – são presença assídua.

A Reserva Natural das Ilhas Desertas, a sudeste da ilha da Madeira, é outro sítio a visitar para tentar um encontro com a foca-monge, a foca mais rara do mundo, considerada em perigo crítico de extinção. Ali vive a maior colónia a nível mundial (e a única em Portugal) desta espécie, que tem vindo a aumentar graças às medidas de protecção da reserva. Na ilha da Madeira há vários centros de mergulho que organizam viagens até lá.

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