Tatiana Macedo: o mundo olhos nos olhos
De diferentes pontos de vista surgem diferentes tipos de pensamento. Tatiana Macedo escolhe olhar o mundo a partir das fronteiras. É a primeira vencedora do Prémio Sonae Media Art.
No trabalho de Tatiana Macedo são recorrentes os momentos em que a câmara se posiciona de cima a observar obliquamente o mundo, lá em abaixo. Há vários desses momentos na peça com que a artista de 34 anos venceu no dia 11 de Dezembro o Prémio Sonae Media Art.
Parceria entre a empresa detentora do PÚBLICO e o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, o prémio, no valor de 40 mil euros, é actualmente o maior à criação na área das artes plásticas em Portugal. Tatiana Macedo venceu-o com uma instalação vídeo de projecção simultânea em três ecrãs. O título é 1989 e os momentos de que falamos são perspectivas quase a pique sobre Pequim. Ou, melhor, são perspectivas quase a pique sobre pessoas em Pequim.
Há uma rapariga a espreguiçar-se num dos andares da nova ala da Biblioteca Nacional da China, a maior da Ásia e uma das maiores do mundo. Parece noite, as luzes estão acesas e lá está ela, sentada a uma mesa, entre as estantes de livros. Vêmo-la daqui, de longe e de cima, a abrir os braços e estirar o corpo – uns instantes de coreografia causal. Depois, há essa outra dança do sofá vermelho que circula pelas escadas de serviço de um grande prédio. Está a ser transportado por homens que, vistos assim, daqui, parecem pouco mais do que cartoons em movimento.
Na tradição francesa esse tipo de plano chama-se “plongée” – vem da ideia de mergulho. Faz com que os sujeitos das imagens pareçam pequenos e desprotegidos. Na teoria cinematográfica tradicional, é um mecanismo de criação de empatia. Quem observa cria um laço de afecto com aquilo que observa. No entanto, não olhamos nos olhos – não é uma relação entre iguais. Nesta estrutura, quem observa ganha dimensão, ou seja, fica em posição de domínio.
Em português, disto, diz-se “plano picado”. Só em inglês tem a designação com as implicações que interessam a Tatiana Macedo. Na tradição anglófona, a versão mais poética é “god’s eye view”. Em tradução livre, quer dizer “a perspectiva do olho de deus”. E essa expressão enche-se de conotações críticas sobre a forma como cada um de nós se posiciona para observar o mundo.
É uma questão com tanto de físico como de metafísico. “A mim interessa-me posicionar-me nas fronteiras, ter um pensamento de fronteira”, diz a artista. Isto, de certa maneira, implica não estar em lado algum. Implica escolher territórios de ninguém. Implica, pelo menos, não estar dentro, criar intencionalmente distância como estratégia de observação.
É uma escolha ética. Uma tentativa de corte com perspectivas reincidentes. Que é, precisamente, o que os vários planos picados de Tatiana Macedo procuram comentar. Afinal, qual de entre nós, humanos, tem legitimidade para assumir o papel de deus?
É uma pergunta que leva a outras. Por exemplo, porque insistimos nós, em 2015, no tipo de perspectivas eurocêntricas que marcaram toda a nossa relação histórica com regiões como África e a Ásia? É uma das questões levantadas por 1989 – é também um dos pilares do pensamento teórico de Tatiana Macedo. Em parte, ligado à sua biografia familiar.
Os últimos filhos do Império
Nascida em Lisboa em 1981, Tatiana Macedo apresenta-se como luso-angolana. A mãe nasceu em Angola, é angolana; o pai, apesar de português, cresceu também em Angola; a irmã mais velha nasceu ainda em África. Chegaram todos a Portugal já seis anos depois da independência dos antigos territórios ultramarinos. E então, pouco tempo depois nasceu ela, que já vinha de lá.
Os últimos filhos do Império sabem exactamente o que quer dizer crescer numa família assim: é uma bolha com sons, cores, texturas e sabores próprios. Traz um legado específico, um imaginário próprio. “Não seria correcto dizer que sou portuguesa”, explica a artista. E talvez seja verdade. Da mesma forma que talvez não seja realmente angolana. Qualquer que seja o significado de qualquer dessas designações de nacionalidade. Ela parafraseia o sociólogo polaco Zygmunt Bauman: “A única verdade, hoje, é que estamos todos ligados, somos interdependentes, estamos implicados uns com os outros de forma global.”
É imaginar o efeito borboleta aplicado à humanidade: se nos virmos como colectivo ou como sistema universal, percebemos facilmente como as decisões de um único indivíduo na Europa ou nos Estados Unidos podem representar um furacão na vida de vários indivíduos em África ou na Ásia – e vice-versa (como os anos desde o 11 de Setembro de 2001 vêm provando uma e outra vez, quebrando com a lógica unidireccional que dávamos até então como garantida).
Isto quer essencialmente dizer que o que acontece a um de nós diz ou deveria dizer respeito a todos. Como pares, como iguais. Não é o que acontece. E Tatiana Macedo diz-se “cansada do olhar ocidental sobre ‘o outro’”: “Ainda se vê muito, na arte contemporânea. Há artistas que pensam: o meu é um novo olhar sobre o outro. Mas reiteram: ‘o outro’.”
Tatiana Macedo estudou antropologia visual. Não começou por aí. Começou pelo curso de Design de Moda da Faculdade de Arquitectura de Lisboa. Dois anos depois estava em Londres, na St. Martins, onde moda e Belas Artes funcionavam, na altura, no mesmo edifício de Charing Cross. Quando decidiu mudar não foi sequer preciso atravessar a rua. Depois estudou também fotografia. E todas estas áreas contribuíram com capacidades técnicas e teóricas que informam hoje uma obra essencialmente fílmica. Mas vem da antropologia – a contemporânea – o que diz agora: “O outro somos nós, temos vários outros dentro.”
Em 1989 está isso, também. O título corresponde ao ano da queda do Muro de Berlim e às imagens a que a artista se lembra de assistir na televisão. Foi o momento em que a Alemanha deixou de estar dividida em duas – a do lado Ocidental e a do lado Oriental; a de dentro e a de fora da Cortina de Ferro. Foi um momento de unificação real, mas também de fragmentação simbólica – o Bloco de Leste e toda a ordem estabelecida no pós II Guerra Mundial desmoronavam tijolo por tijolo.
Não tem forçosamente a ver com isso, mas não é por acaso que a peça escolhe o formato de tríptico: “Na linguagem ocidental o pensamento constrói-se a partir de binómios”, explicou Tatiana Macedo numa entrevista recente.
Sim, não. Claro, escuro. Bem, mal. Certo, errado. Não é este o sistema de todas as estruturas de pensamento. “Também por isso escolhi três ecrãs, para quebrar com essa lógica.”
Mas 1989 começa com um binómio, um frente-a-frente: James Baldwin e William F. Buckley estão na Universidade de Cambridge a discutir um tema: “O sonho americano será às custas do negro americano?”
O debate, de 1965, é histórico e as imagens, a preto e branco, são de arquivo. Surgem depois as imagens realizadas pela artista. As imagens de Pequim, cruzadas com as imagens de uma tradutora-intérprete a quem a artista deu a ler um texto sobre colonialismo e pós colonialismo.
“Em 1989 tudo é traduzido, até a tradutora, porque vivemos em constante processo de interpretação e tradução”, diz também Tatiana Macedo. É uma verdade maior sobre a comunicação e a produção de pensamento, partes fundamentais da existência humana e em que as estruturas de poder da linguagem são evidentes. É uma verdade de contornos bastante pragmáticos no percurso de vida da própria artista, que circula entre Lisboa, Londres e Amesterdão e que passará 2016 em Berlim, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian na residência artística Künstlerhaus Bethanien. Há dois anos, passou também uma temporada na China.
Foi um dos 50 fotógrafos internacionais convidados para fazer imagens do país. A ideia do Governo, que fez o convite, era fazer fotografar Pequim. Ou, pelo menos, o que interessava. “Tratava-se de vender a cidade como postal turístico, diz a artista. A Praça de Tiananmen, por exemplo, não fazia parte dos percursos. Tatiana Macedo foi lá por si, filmou sem autorização. Tal como filmou e fotografou muitos outros espaços considerados sem interesse pelo Governo, como um dos bairros populares, conhecidos como “hutong”, onde a artista estava um dia quando chegou um alerta de poluição extrema e viu como a poupulação se blindava em casa, a tapar as frestas de portas e janelas com toalhas e outros panos.
Muitos dos materiais fílmicos então recolhidos compuseram a exposição Foreign Grey, que Tatiana Macedo apresentou em 2014 na Solar – Galeria de Arte Cinemática, em Vila do Conde. O título dessa exposição veio de um pedido feito pelas autoridades chinesas – que os céus cinzentos das imagens dos fotográfos convidados fossem trabalhados para se tornarem azuis.
Em Foreign Grey todos os céus foram cinzentos. “Acabei por aceitar o convite [dessa ida a Pequim] porque achei interessante reflectir a imagem a partir do pressuposto de uma ‘imagem contratada’, em que nós [artistas] eramos apenas um instrumento de produção de imagens já ‘realizadas’ à priori”, diz a artista.
É um exemplo da porosidade das fronteiras entre o documental e a ficção que surge também em 1989, que a autora vê como um “ensaio em campo expandido”. É uma referência ao cruzamento e ao atravessar de fronteiras entre imagens de arquivo, imagens realizadas pela artista e a encenação que qualquer olhar acarreta – por muito que vise uma alegada “neutralidade”. É uma referência também à própria espacialidade da obra, cujos três ecrãs surgem suspensos no espaço, ocupando a sala de forma escultórica.
1989 está no Museu do Chiado até 31 de Janeiro, juntamente com as peças dos restantes quarto finalistas: a dupla Musa paradisiaca, de Eduardo Guerra (n. 1986) e Miguel Ferrão (n. 1986), Patrícia Portela (n. 1974), Diogo Evangelista (n. 1984), e Rui Penha (n. 1981).
Os artistas foram escolhidos a partir de um universo de cerca de 150 proponentes por um júri de selecção constituído por Emília Tavares, curadora de fotografia e novos media do Museu do Chiado, e os curadores independentes Sandra Vieira Jürgens e Natxo Checa. O júri que acabou por dar a vitória a Tatiana Macedo foi composto pela directora do Electronic Arts Intermix, Lori Zippay, o realizador Marco Martins e o curador João Silvério, da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
O prémio visa distinguir trabalho em vídeo, computação, som, mixed-media, bem como linguagens de cruzamento entre a performance, a dança, o cinema, o teatro e a literatura.