Um conjunto de iniciativas recentes levadas a cabo pela CML, pela RTP e outras organizações sobre o tema dos retornados, umas mais, outras menos associadas à comemoração das independências da ex-colónias de Portugal tornaram premente o debate público em torno do que é o ‘menos dito’ desta questão. Abordar a questão dos retornados só depois de terem passado 40 anos sobre o acontecimento pode parecer estranho, não fora o caso desta questão estar associada a uma outra sobre a qual se produziu uma amnésia que se teima em não tratar. Trata-se do colonialismo português. Não é possível abordar seriamente a questão dos retornados enquanto não se realizar um livro negro do colonialismo como o fizeram outros países ex-colonizadores e, em consequência disso, não se tratar o tema - que é um problema da História mas também da Literatura e dos Estudos Culturais - e não se produzirem narrativas que sejam disseminadas e acolhidas pelo sistema de aprendizagem escolar e de formação dos cidadãos.
Na criação da narrativas sobre o colonialismo e suas consequências, cujo problema histórico é o retorno maciço das ex-colónias, é crucial contrapor as narrativas quer dos ex-colonizados, quer dos cidadãos portugueses residentes em Portugal, que foram os anfitriões dos retornados, quer ainda, e necessariamente, dos cidadãos das ex-colónias que assistiram à partida desses mesmos retornados. É o único modo de evitar a hegemonia de uma “história única.”
Na verdade, mesmo o próprio termo “retornado” aplicado a todos os cidadãos que viajaram das ex-colónias entre 1974 e 1977 com o epíteto de “retorno de nacionais”, merece uma análise mais sofisticada. Tenham eles sido 500.000 ou 1 milhão, nem todos regressaram a Portugal, uma vez que grande parte deles nunca tinha partido da Metrópole. Muitos devem ser considerados “refugiados”, porque na verdade fugiam de situações de guerra e de conflitos armados, despojados de quaisquer bens, não tendo nenhuma ligação territorial à Metrópole ou, como dizia um testemunho na exposição Retornar: “A minha pátria é portuguesa, de facto a minha nação é Portugal mas a minha terra seria Angola….”. Outros podem ser considerados, segundo a tipologia da ONU, como “deslocados”: pessoas obrigadas a saírem das suas casas e regiões por força de situações de violência, deslocando-se para outros países e continentes, como foi o caso de muitos que partiram para a África do Sul e Brasil. Há ainda um outro grupo, minoritário, de portugueses que decidiram ficar nos países entretanto independentes, que chegaram a aderir aos partidos do poder e a organizações, mas que depois acabariam por partir. É um grupo de decepcionados tomaram os mais diversos caminhos.
Uma das razões pelas quais o problema dos retornados não tem sido central no debate político, cultural, artístico deve-se à falta de documentação devida e maciçamente tratada e à ausência de produção cultural sobre o tema. São poucos os filmes, as obras de artes visuais, performativas e literárias que abordem este tema. No domínio da literatura há muitos textos escritos, a maioria dos quais apenas com relatos pessoais de quem partiu, sem uma preocupação literária. São disso excepção, O Retorno de Dulce Maria Cardoso, O País Fantasma de Vasco Luís Cordado e Caderno de Memórias Coloniais de Isabela Figueiredo. Esta última obra tem a enorme qualidade literária de tecer uma narrativa em que a relação entre o colono (pai) e os colonizados (empregados) replica a relação de subalternidade entre pai e filha, definindo uma complexa relação de poderes, típica das relações coloniais, num contexto tropical bastante sexualizado.
A integração dos retornados é um dos mitos neo-coloniais que é importante desconstruir. Se é verdade que para muitos refugiados, deslocados, retornados foi possível alguma integração laboral e reconhecimento de vizinhança, muitas vezes devido ao capital de conhecimentos profissionais com que muitos chegavam a Portugal, o mesmo capital tornou-se muitas vezes uma dificuldade por ser razão de competição no mercado do trabalho. Houve, por outro lado, uma outra integração, feita pelos anfitriões ao aceitarem alguns hábitos culturais e vocabulários trazidos pelos novos habitantes, que foram sempre limitadas, uma vez que que as práticas culturais urbanas das cidades principais das ex-colónias eram muito mais libertárias do que as do ambiente conservador da metrópole. Este desajuste não facilitou a integração das mesmas práticas, resultando daqui uma convivialidade possível, intercalada por momentos em que os retornados se fechavam nos seus ritos sociais trazidos de África para as festas de convívio só entre eles.
Assim como não se pode tratar o tema dos retornados sem implicar o colonialismo e não se podem tratar estes dois problemas sem referir o regresso actual dos portugueses a África, regresso este tão cheio de ambiguidades e contradições como foi retorno. É um facto, contudo, que quando se pensava que as independências das ex-colónias e a partida dos ex-colonos tinham acabado com o luso-tropicalismo - um dos instrumentos de propaganda colonialista e racista do Estado Novo - eis que o mesmo volta configurado como o regresso à África rica, à possibilidade dos grandes negócios, ao futuro da emigração portuguesa, ao entendimento lusófono. É Gilberto Freyre revisto e aplicado no séc. XXI.
After Empire, Melancholia or convivial culture? de Paul Gilroy é uma obra de referência para estudar os efeitos do colonialismo inglês na actualidade. Nela se explica este fenómeno do regresso dos portugueses às ex-colónias de que construíram uma representação, onde predomina exuberância, riqueza, liberdade de costumes e uma posição social de supremacia, representação essa, que, feita a partir de uma pós-memória de fotografias de família, testemunhos dos pais ou de amigos dos pais, produz uma melancolia que estimula esse regresso.
E é também essa mesma melancolia do império colonial que, através de efeitos estéticos das fotografias, sejam elas as dos caixotes na doca ou das calças ‘à boca de sino’ dos jovens retornados na pastelaria Suíça, sejam as que foram tiradas em Lourenço Marques, no Mussulo, nos Bijagós, em Luanda deturpam a razão dos retornados, deslocados, refugiados, remetendo estes, no trauma, dor e abandono que viveram, apenas para um parêntese da história, digamos de 74 a 77.
Ora a história começa muito antes e dela fazem parte integrante os ex-colonizados e as suas narrativas que estão por desocultar
40 anos Depois das Independências