Prémio Pessoa para Rui Chafes, um artista íntegro e inteiro
O escultor, de 49 anos, é apenas o segundo artista plástico a receber o mais importante prémio de consagração português.
Poucos artistas nascem já feitos, inteiros, completos. Rui Chafes sim. É um caso raro. Em 1992, assinava as suas primeiras exposições quando a revista K lhe dedicou um artigo de título lapidar: “Este homem é um génio.” Chafes tinha apenas 26 anos. Tem 49 agora que recebe o Prémio Pessoa, o mais importante prémio nacional de consagração, o único que distingue protagonistas de várias áreas das ciências e humanidades.
Em 29 edições, é apenas o segundo artista plástico contemplado. O primeiro do último quarto de século, desde 1990, quando foi atribuído a Menez já perto do fim da vida da pintora (1926-1995).
O júri, liderado pelo presidente do grupo Impresa, Francisco Pinto Balsemão, integrou o economista Álvaro Nascimento, o sociólogo António Barreto, a jornalista e escritora Clara Ferreira Alves, o administrador Diogo Lucena, o arquitecto Eduardo Souto de Moura, o neurocirurgião João Lobo Antunes, o historiador da arte José Luís Porfírio, as cientistas Maria Manuel Mota e Maria de Sousa, o ex-presidente Mário Soares, o jurista Miguel Veiga, o presidente executivo da Impresa, Pedro Norton, o engenheiro Rui Magalhães Baião, o musicólogo Rui Vieira Nery e o filósofo Viriato Soromenho-Marques.
Chafes "consegue o feito raro de produzir uma obra simultaneamente sem tempo e do seu tempo", disse esta sexta-feira Francisco Pinto Balsemão no Palácio de Seteais, em Sintra, ao anunciar o prémio, no valor de 60 mil euros atribuídos pelo semanário Expresso com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos. Ao PÚBLICO, Chafes reagia pouco depois: “É uma sorte poder fazer um trabalho ao longo de tantos anos e ele ter algum tipo de significado e suscitar o interesse e o reconhecimento de uma comunidade. Não estou certo de o merecer nem de ter a importância de outras pessoas que o receberam, mas é uma alegria e uma grande responsabilidade.”
A responsabilidade, diz o escultor, radica no facto de quando um prémio transversal como o Pessoa é entregue a um artista a distinção se perfilar não apenas como reconhecimento de um percurso individual, mas constituir um alerta maior, “uma chamada de atenção para a própria existência da arte no mundo”.
Grande parte da actividade artística, diz Chafes, destina-se hoje a alimentar o mercado. “É legítimo.” Mas há outros timbres de intencionalidade, gestos que entendem ter “um papel ético no mundo”. “O meu é levantar questões, fazer perguntas e pôr as pessoas à procura de respostas no sentido da essência daquilo a que chamamos vida e existir.”
O bom trabalho artístico, conclui o escultor, “põe sempre questões sobre o essencial”: “Tem a ver com descarnar, ir ao caroço.”
Há menos de dois anos dizia ao PÚBLICO: “Não me interessa pertencer a um tempo de brilhantes e coloridos despojos de uma irreparável perda e confusão. Não quero que o meu trabalho faça parte desta vertigem de ignorância e consumismo, desta dessacralização do mundo e do milagre da vida. Não se trata de alheamento do tempo presente: é por estar bastante informado sobre o tempo que me coube viver que não me quero refém dele. Acredito, como os antigos, que deve haver um significado único e superior por detrás de cada erva, flor, nuvem que passa ou criança que nasce. Para mim, a arte deve ser o espelho dessa íntima relação, desse encantamento, dessa magia. Estou farto da lógica horizontal que nos impõe um olhar conformado sobre a banalização do mundo.”
Na obra de Chafes, esta perspectiva tem-se traduzido numa dedicação exclusiva ao trabalho do ferro – uma das singularidades primeiras da sua marca autoral.
Não há, nunca houve muitos artistas a trabalhar sistematicamente e em exclusividade o ferro. Nasceu com a escultura modernista a essência do que, na segunda metade do século XX, seria mais frequentemente procurado no trabalho com este material: a monumentalidade, uma reflexão sobre o peso e a densidade, sobre a natureza e o poder de uma presença supostamente perene, sobre o seu impacto tanto na paisagem como no humano.
Não foi esta a via de todo o minimalismo norte-americano, o grande momento da utilização do ferro na contemporaneidade, mas é a via do mais emblemático dos artistas a trabalhar hoje o ferro: o norte-americano Richard Serra. Ora, pode dizer-se que Chafes traça um caminho diametralmente oposto ao de Serra: em vez da exibição da matéria, o seu apagamento, em vez do peso, a extrema leveza, em vez da densidade, a fluidez.
Quase sempre pintadas de negro, as esculturas de Chafes parecem em geral esculpidas no ar. Normalmente, tocam o chão em um, dois pontos. Dependuram-se de paredes e cantos de salas, varandas, campanários, árvores. No ponto mais absoluto da sua leveza, parecem flutuar como grandes sóis extintos, como luas ou como balões. Podem pesar centenas de quilos que, ainda assim, parecem desvanecer-se.
Com uma aura frequente de anacronismo antigo, todas vivem de um misto de erotismo e belicismo, de sensualidade e violência, todas se afiguram melancólicas, mas também extáticas, precisas e imprecisas, vagas e concretas, secretistas, fantásticas, inquietantes, subversivas, anticlássicas e anti-racionalistas, individualistas, idealizadas e idealistas. Muitas sugerem prisões, mas também sempre a possibilidade de uma liberdade absoluta para o humano.
Chafes já as descreveu como momentos “de vida triunfante, na qual tudo, tanto o bem como o mal, se encontra igualmente divinizado”. Será por essa ligação ao coração pulsante das grandes intensidades que parecem muitas vezes deslocadas quando vistas em museus ou galerias. Trazem mais naturalmente a ressonância de igrejas e templos, jardins, florestas, montanhas, falésias e praias.
Chafes costuma enfatizar o lamento que existe na sua obra pelo corte que o Modernismo impôs na “relação essencial entre lugar, sentido e obra de arte”: “Noutro tempo, as obras nasciam e viviam no local para onde tinham sido pensadas e realizadas, esses espaços frequentados por homens e mulheres à procura de uma voz: as igrejas, os templos, a Natureza, a paisagem. Hoje a maior parte da arte é constituída por pobres objectos órfãos, que não têm onde cair mortos, que andam de mão em mão até acabarem colocados numa redoma de vidro, ou no lixo.”
Chafes fala “da arquitectura do coração, da alma, da memória, do medo, da esperança, do silêncio e recolhimento das pessoas”. Em tempos como os actuais, a arte, diz ele, torna-se “um duro exercício de resistência onde o artista permanece na sombra e, através do seu trabalho, faz dela o seu dia mais luminoso, caminhando no fio de uma afiada lâmina, com alguns outros discretos companheiros dessa solidão".
Em Fevereiro do ano passado, aquando da inauguração da grande antológica O Peso do Paraíso, que juntou no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian cerca de 100 obras de 25 anos do seu percurso, Isabel Carlos, que assinou a curadoria, apontava a imensa singularidade deste artista: “Quando vemos um Rui Chafes, sabemos que só pode ser um Rui Chafes. É um universo próprio, inconfundível.”
Nessa altura, Chafes dizia: “Espero começar a compreender o que fiz e o que faço quando tiver 80 anos. Ou mais. Parece que o Hokusai, o grande mestre japonês, tinha esta mesma consciência: dizia que tudo o que tinha produzido antes dos 70 anos não era digno de atenção. Aos 75 teria começado a aprender algumas coisas, aos 80 teria feito alguns progressos, aos 90 teria penetrado o mistério das coisas, aos 100 teria alcançado uma etapa maravilhosa e aos 110 tudo o que faria, fosse um ponto ou uma linha, estaria vivo. É assim que eu penso também.”