A mitologia cultural brasileira encontra em Charles Cosac o seu esplendor. Figura rara, algo retirada da grande cena pública, contam-se sobre si os maiores absurdos, estórias embasbacadas que, quase invariavelmente, apenas guardam mentira.
A excentricidade de Charles Cosac estará sobretudo na maneira altruísta como geriu a mais preciosa das editoras brasileiras, a Cosac Naify. Digo altruísta porque sempre deficitária nos apuros, produzindo os objectos mais luxuosos e vendendo-os sem expectativa de retorno para o investimento feito. A Cosac Naify foi, em tantas situações, uma instituição de cuidado público, uma espécie de organismo para a arte que favoreceu o acesso de todos a livros de vanguarda extrema que impulsionaram e motivaram artistas, autores e suas respectivas audiências.
Perder a Cosac Naify é perder um reduto de cultura e elegância, mas já não acontece em absoluto. Agora é História, vira património, memória para sabermos do nosso tempo e auscultarmos o tempo seguinte. De facto, termina, com vinte anos de idade, um catálogo de puro requinte onde, pelo preço de um convencional livro, se acede a uma ideia de futuro. A Cosac foi sempre uma porta para o depois. Funcionou invariavelmente no depois dos outros, muito além do que já se sabia. Considero que a Cosac foi uma escola. Creio que o Charles deve ter bem consciência disso, ele bancou uma escola para os mais admiráveis profissionais e para o mundo dos sonhos.
Sou do tempo de Cassiano Elek Machado na direcção e Emilio Fraia na edição. Entrei na editora com eles, entrei num tesouro. Trabalhei, mais tarde, com Florencia Ferrari na direcção e Marta Garcia na edição. A todos reconheço essa mesma fúria pela ideia, uma necessidade de procurar para lá do óbvio. A todos agradeço e parabenizo, incluindo a vasta galeria de outras pessoas que, nas mais diversas funções, me receberam e apoiaram.
Entendo bem que os sonhos devam ser medidos. A demasia pode deitá-los ao pesadelo. A decisão de Charles Cosac, com a concordância de Michael Naify, é coragem pura. Nem toda a gente é capaz de se afastar de um tão grande amor. Nem toda a gente suporta a responsabilidade de colocar um ponto final num amor que se torna, às vezes até por ternura, num tremendismo qualquer, numa violência.
Na verdade, creio que apenas orgulho deve competir à larga equipa da Cosac Naify. Fecharem o seu catálogo é um lugar futuro que se dispõe para outras almas insatisfeitas com o que há no lado comum. A referência fica, o futuro fica.
Sou testemunha do efeito dourado da Cosac Naify. O bom assombro que provoca a simples menção do nome é um imaginário no qual entramos. Tive mil conversas sobre o assunto. Jornalistas e leitores falaram-me entusiasticamente da qualidade encantada do universo Cosac. Como se a porta de Alice fosse ali. Os escritores andam invariavelmente entre espelhos esquisitos, malucos de uma ilusão para a outra, mas nem sempre as editoras lembram a profunda magia dos livros, a profunda magia de se escrever e de se ler. A Cosac era isso, um conto de fadas onde cada gesto se dispunha ao impossível. A Cosac Naify era um lugar de acreditar.
Imagino que o Charles siga sendo essa pessoa de qualificação raríssima, feito de um carinho e ansiedade que sempre lhe reconheci. Imagino que não esteja abandonando nada nem ninguém. Muito ao contrário. Este foi o modo que encontrou para lhe ser possível manter a relação com tudo e todos, aquilo e aqueles que de verdade importam ao seu delicado coração. Num certo sentido, o anúncio do fecho da Cosac Naify precisa de ser uma tristeza que aprenderemos a celebrar. Celebrarei sempre o haver por lá passado. Guardarei a minha biblioteca Cosac Naify como originais de uma arte superior. E essa será uma inesgotável razão de festa.