O terrorismo salva muitas vidas
Se o terrorismo fosse, de facto, um problema grave, a forma como as nossas instituições operam já teria garantido a nossa extinção enquanto espécie.
Bom, talvez devesse ter resistido ao exagero: não é verdade que o terrorismo salve vidas, mas certamente torna muitas vidas incomparavelmente mais ricas, mais excitantes e mais prósperas. Ora vejamos.
Para começar, um ataque de dimensão razoável permite aos políticos, essa sub-espécie emasculada e cinzenta, engrossar a voz e fazer rewind alguns séculos, regressando aos tempos em que governar um estado era sinónimo de liderar um exército (consta que transpor directivas comunitárias, vá-se lá saber por quê, dá menos pica). Mas os políticos não estão sozinhos. Na manhã após um ataque, comentadores e editorialistas — compreensivelmente cansados de défices, sustentabilidades e manhosas telenovelas político-partidárias — também acordam transmutados: são agora especialistas nas mais modernas técnicas de combate urbano, bem como nas origens e ideologia do exótico grupúsculo extremista que fez a notícia. E os académicos? Também para nós se abrem novas portas: haverá mais fundos para investigação numa variedade de disciplinas (da psicologia à engenharia de materiais, só os aselhas ficarão de fora), mais oportunidades mediáticas (resultante da maior procura de “especialistas” para compor o ecrã num qualquer noticiário) e até, para os solteiros (ou adúlteros), melhores perspectivas de engate (não esqueçamos que o terrorismo é sexy). Isto para não falar das chefias das polícias e serviços de informação, bem como dos burocratas responsáveis pela administração interna e segurança, para quem os benefícios são bem mais directos (novos poderes, leis mais permissivas, mais fundos).
No meu caso particular, devo aos terroristas uma recente e muito agradável estadia (grátis) em Estrasburgo, onde servi como relator na sessão de encerramento do Fórum Mundial da Democracia organizado pelo Conselho da Europa. O tema do fórum deste ano? “A Liberdade na Era da Vigilância”. Participar neste evento — que ocorreu exactamente entre os ataques de Paris e do Mali — reforçou em mim três convicções que tinha a respeito destes temas.
1. O terrorismo não importa. Porquê? Porque estatisticamente o terrorismo mal existe: na Europa, e por muito que insistam em dizer-nos que vivemos em tempos “excepcionalmente perigosos”, por ano morrem, no máximo, uns pares de centenas de pessoas em atentados. A nível global, se excluirmos países em guerra civil (ou parecido), a imagem não será assim tão diferente. Para a enorme maioria de nós, continua — e, tudo indica, continuará — a ser imensamente mais provável morrer num acidente de viação (ou talvez mesmo engasgado com uma avelã) do que ser metralhado num café ou desintegrado por explosivos caseiros.
2. O terrorismo importa pelo que revela. Um bando de indivíduos realiza um ataque matando menos de 0.0002% da população de um país e o sistema político-mediático entra em modo de overdrive. Fala-se de uma “ameaça existencial” na sequência dessa “tragédia de proporções épicas”. Discute-se, com descontracção, medidas excepcionais que colocam em causa direitos fundamentais consagrados há séculos. Políticos, receosos de parecer fracos, decidem que parte remota do mundo vão, já amanhã, bombardear em retaliação. Olhando para os media, vemos que o resto da realidade foi obliterado: o mundo — o mundo para além das enternecedoras vigílias de solidariedade, das musculadas operações policiais e das descolagens dos sempre cirúrgicos caças-bombardeiros — deixou simplesmente de existir. Resumindo, o terrorismo ajuda-nos a perceber como as nossas instituições funcionam da maneira oposta à que deveriam. Em vez da sobriedade, temos a urgência da acção; no lugar da ponderação, o exagero e a reacção a quente. Se o terrorismo fosse, de facto, um problema grave, a forma como as nossas instituições operam já teria garantido a nossa extinção enquanto espécie. O que me traz ao meu próximo ponto.
3. O terrorismo importa pelo que ofusca. Acontece que, na realidade, o mundo não pára quando ocorre um destes ataques. Os verdadeiros problemas — as alterações climáticas, a fragilidade do sistema financeiro internacional e, de forma ainda mais fundamental, a nossa impotência às mãos das elites político-económicas que nos (des)governam — continuam a sua marcha destruidora. Fazem-no, no entanto, na invisibilidade, pois entretanto as nossas democracias deixaram-se cegar por um par de disparos e explosões. François Hollande, a título de exemplo, já proibiu as manifestações durante a conferência sobre as alterações climáticas que vai ocorrer em Paris.
Resumindo, o terrorismo não nos matará — mas, qual bom blockbuster de Hollywood, manter-nos-á adequadamente entretidos enquanto as verdadeiras ameaças que enfrentamos se encarregam disso.
Professor visitante de gestão da Universidade de Nova Iorque, primeiro português convidado para o Fórum Mundial da Democracia, autor do livro "Reinventar a Democracia, 5 ideias para um futuro diferente"