A guerra
Em todos os gestos colocamos uma tristeza, um sentimento doído pelo estado do mundo. De algum modo, como nos livros de quadrinhos, desejamos que um super-herói apareça voando e envie para Marte os maus, sentados num humilhante foguete velho a deitar fogo pelo rabo. A impressão mais trágica, no entanto, é a de perceber que não bastaria encontrarmos um super-herói, por tão forte ou voador que fosse, porque o mais difícil estaria em descortinar o inimigo ubíquo. Esse ser plural que está no meio de nós. Esse ser plural que, por estar em toda a parte e radicar em todo o mal, ameaça revelar-se também dentro de nós. Pervertendo-nos, seduzindo-nos, retirando-nos a qualidade, e mesmo a vontade, do discernimento.
Passamos a desconfiar de todos e somos severos. Exigimos direitos como quem manda cortar cabeças. Somos intransigentes, evocamos tradições, que são apenas as de que nos lembrámos desde meninos, e consideramos tudo quanto abale a normalidade ou o hábito um ataque insuportável e desnatural. Temos quase nunca a noção de que as sociedades têm um tempo longo e que não existe pureza em lugar algum. Somos misturas, por mais genuínos que queiramos perceber-nos, somos misturas.
Há alguns anos que se percebem as fúrias que precedem as grandes guerras. Num confuso sentido de forças, os países espiam-se mutuamente e dizem constantemente o contrário do que fazem, proclamam uma diplomacia que é apenas plástica, uma hipocrisia para enganar povos e entreter a imprensa. Tudo se passa num aparato performático. Não está em causa a verdade mas a fuga ao escrutínio. Os governos trabalham para se manterem a trabalhar, vazios de um sentido comum, de uma missão efectivamente comprometida com o bem-estar ou com a protecção dos seus eleitores.
Entre os países os ódios antigos não se curaram. A memória é curta mas os erros renascem porque os paradigmas são mantidos. A terra já germina sozinha porque se tornou capaz de imaginar a sua própria semente. Germina uma e outra vez o mesmo problema. A humanidade está condenada a ser uma ideia adiada. Vivemos num admirável ensaio, mas a reincidência no grotesco não permite a efectivação do projecto. Somos aspirantes a humanos. Para nos concretizarmos como pessoas, não podemos mais do que o fazer isoladamente e a espaços, tal fosse uma escatologia sentimental, uma ingenuidade ou excrescência de se existir. A humanidade de cada um passa a ser uma intimidade até ridícula de se ostentar. Em público só a mediania faz sentido. Qualquer entusiasmo é um absurdo incompatível, incoerente, com a consternação da falência das convicções universais.
O cepticismo é o que temos para opor a quem obstinadamente apresenta uma proposta de futuro. O grande mundo parece já não ter nada para propor, ao menos não abertamente, não para toda a gente, porque as elites do poder comportam-se como estando a dirimir pessoas, medindo-as e, depois, seleccionando. O poder faz uma triagem clara, provavelmente convicto de que, esgotados os recursos do planeta, é fundamental decidir quem procede e quem, à partida, é preterido, menos hábil, menos necessário, menos cotado nas finanças do grande jogo.
Na verdade, os nossos governos não têm muito a opor ao terror que nos é infligido. Estamos há anos a assistir à barbárie mais impensável e não se saiu ainda do discurso xenófobo e básico que não protege ninguém. Muito ao contrário, apenas cria um efeito radial de um mal-estar que se devia confinar, conter, até eliminar.