As crianças vão ouvir
Vem aí o fim da exclusão absurda na candidatura à adoção por casais casados ou unidos de facto.
Não há muito a acrescentar ao debate sobre parentalidade e orientação sexual. Ao longo de mais de uma década, houve decisões importantes a nível europeu, houve conferências e livros e artigos de jornal e debates nas televisões e inúmeros estudos também em Portugal e mais-do-que-consensos científicos. Tudo partilhado não só no espaço público e mediático mas dentro do próprio Parlamento, em várias votações e sobretudo no longo processo que se seguiu à aprovação inicial da coadoção em 2013. E só na Europa houve Espanha e França e Reino Unido e Irlanda e Malta e Luxemburgo e Países Baixos e Bélgica e Suécia e Noruega e Finlândia e Dinamarca e Áustria e Islândia a avançarem nesta matéria.
A questão já cansa, de tão óbvia. E nem era preciso justificar grande coisa, que quem discrimina e quem quer discriminar é que tem que explicar muito bem as razões fortes e atendíveis para o fazer. Não, claro que não consegue. Ao longo da última década, o máximo que conseguiram foi mesmo encomendar dois ou três estudos devidamente desacreditados, face a uma panóplia imensa de estudos transversais e longitudinais que justificam os consensos firmes em todas as áreas do saber que são relevantes para a questão. Sim, só sobra mesmo o preconceito.
Isso é claro e tornou-se particularmente evidente na última legislatura, quando uma subitamente extrema-direita resolveu violar conscientemente obrigações internacionais de Direitos Humanos e impor a rejeição do óbvio. E pôr Portugal a par apenas da Rússia, Roménia e Ucrânia como modelos de violação de Direitos Humanos no campo da coadoção. A coadoção vinha proteger crianças. Não aconteceu por causa do superior interesse do preconceito. A vergonha foi histórica, o extremismo inédito.
Agora vem aí a igualdade e vem para ficar. Esta semana, vem aí o fim da exclusão absurda na candidatura à adoção por casais casados ou unidos de facto. É difícil tentar perceber que haja quem ache um risco ter um casal do mesmo sexo a candidatar-se à adoção e a ser escrutinado pelos serviços especializados para que se perceba se está ou não apto a adotar uma criança sem família. E, na semana seguinte, vem aí o fim da exclusão absurda de mulheres solteiras e de casais de mulheres no acesso à inseminação artificial e demais técnicas de procriação medicamente assistida. É difícil perceber que em Espanha estas técnicas estejam disponíveis para qualquer mulher maior e capaz desde 1988 e que por aqui a maioridade e a capacidade das mulheres seja tão difícil de estabelecer.
Se é tudo tão simples, o que falta acrescentar, então? Frisar o ponto mais importante: que as crianças estão aqui.
É que haverá, sem dúvida, quem se disponha a fazer a figura da oposição à igualdade, porque ao longo da história houve sempre nomes que ficaram do lado errado. E é importante pelo menos lembrar-lhes que, mesmo que não queiram que existamos, as nossas famílias estão mesmo aqui, no nosso presente. Que há muitas crianças em Portugal que têm duas mães ou dois pais e que estão nas escolas e integradas na sociedade a todos os níveis. Que têm festas de aniversário, têm amigas e amigos, brincam nos parques, têm festas de pijama. Que veem televisão. Quem se opõe a estas famílias pode não querer ver estas crianças, mas as crianças vão sempre ver e ouvir essa oposição, que o telejornal não tem bolinha.
Vale a pena falar disto porque são as nossas famílias que sabem que não há questão política mais pessoal que esta; e porque é a nós que nos cabe não deixar que ignorem, como já demonstraram querer fazer, as crianças que não têm que ver as suas famílias postas em causa.
Esperemos por isso que do lado da direita haja desta vez pelo menos a liberdade para apoiar a igualdade, que foi tão limitada na última legislatura – e que deputadas e deputados possam evitar a vergonha histórica de terem os seus nomes associados à defesa do preconceito, tão difícil de explicar às gerações futuras, mas também às atuais.
Mas esperemos também que quem se dispuser a fazer a função de se opor à igualdade tenha presente, na sua argumentação, que é mesmo preciso pôr as crianças primeiro e respeitar as suas famílias – as nossas famílias.
É mais do que tempo de sabermos pensar em todas as crianças. É tempo de consciência, de reparação, de igualdade – e, finalmente, de responsabilidade.
Vice-presidente da ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero