Ao largo de Santo André repousa um iate português afundado pelos alemães
Investigadores identificaram os destroços de uma embarcação em madeira afundada a meia milha náutica da costa como sendo um iate luso afundado há quase cem anos por um submarino alemão. Arqueólogo subaquático defende a criação de uma reserva no local.
Naquela manhã de 13 de Setembro de 1917, o pequeno iate à vela Gomizianes da Graça zarpou do porto de Vila Nova de Milfontes com destino a Lisboa “debaixo de um tempo magnífico”, segundo o relato da tripulação recolhido anos mais tarde pelo jornalista José Costa Júnior. As velas seguiam a todo o pano, a viagem era calma. Mesmo assim, o mestre e co-proprietário da embarcação, José Brissos, ordenou a navegação “sempre à vista de terra e encoberto com ela”.
A Grande Guerra estava no auge e Portugal estava na mira das armas alemãs, depois de alinhar com os Aliados. Menos de dois meses antes, um submarino germânico tinha feito explodir no estuário do Tejo o navio da Marinha Portuguesa Roberto Ivens. Morreram 15 pessoas. Por isso, para Brissos, todo o cuidado era pouco, até porque não tinha seguro nem do iate nem do carregamento – pranchas de cortiça, 600 sacos de trigo e 250 de milho para o fabrico de pão, que começava a escassear na capital.
Duas semanas antes, o submarino UB-50 tinha saído do porto de Kiel, na Alemanha, em direcção a Montenegro. Iniciava assim uma longa patrulha de guerra durante a qual afundou 11 navios, segundo o diário de bordo consultado pelo arqueólogo subaquático Alexandre Monteiro e pelo historiador naval Paulo Costa, ambos do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. A 13 de Setembro, o diário regista o afundamento de "dois veleiros portugueses, de cerca de 30 toneladas, carregados com trigo e cortiça".
Um dos veleiros foi o Gomezianes da Graça, ao qual pertencem, segundo acreditam os investigadores, os destroços encontrados num fundo de areia a cerca de 900 metros da costa de Santo André, no concelho de Santiago do Cacém. O casco em madeira e os pedaços em ferro terão sido detectados ainda no final dos anos 1990 por pescadores que foram perdendo ali artes de pesca, e foram filmados em 2005 por um mergulhador. Mas só em Janeiro de 2013 é que o achado foi registado por Joaquim Parrinha, proprietário da empresa Ecoalga - Agricultura Subaquática, que detectou a estrutura na sonda da sua embarcação enquanto navegava na zona.
Inicialmente, Parrinha pensou ter encontrado os restos do navio francês La Callone, da Companhia das Índias Orientais, que naufragou junto a Santiago do Cacém em 1787. Porém, depois de mergulharem no local e de estudarem registos de naufrágios, diários de bordo, arquivos da Marinha e literatura da época, Alexandre Monteiro e Paulo Costa concluíram que não. Aquele barco, "mais pequeno que os maiores da carreira de Cacilhas, pouco mais de dezoito metros de pôpa à proa", de acordo com a descrição dos sete tripulantes, era um iate construído em 1897 em São Martinho do Porto e afundado pelos alemães.
Costa Júnior e a imprensa da época narraram o afundamento. Naquela manhã, a tripulação ouviu um tiro de canhão, cujo projéctil "passou zumbindo entre os dois mastros esguios do pequeno navio". O UB-50 emergiu e intimou o iate a parar. "Numa miscelânea muito gritada de francês, italiano e espanhol", o comandante alemão - "um oficial gordo e rosado" - pediu os dados da embarcação e ordenou aos tripulantes que se retirassem. José Brissos ainda terá tentado "desaparecer" com o seu barco mas o inimigo não deixou. Para o compensar, o alemão chamou-o ao convés do submarino e deu-lhe "um papel escrito em alemão, dizendo que o apresentasse em terra para ser indemnizado", relata A Capital. Quarenta e cinco minutos depois do primeiro aviso, os germânicos rebentaram com o Gomizianes da Graça.
No mesmo dia, o submarino ainda afundou o iate Correio de Sines, mais a Sul. Prosseguiu a rota em direcção ao cabo de São Vicente e no dia seguinte, a 14 de Setembro, afundou outro veleiro português, o Sado, de 196 toneladas e carregado com minério, a 30 milhas a sul de Sines.
No relatório da inspecção e investigação histórico-arqueológica sobre o naufrágio do Gomizianes, que os autores remeteram já à Direcção-Geral do Património Cultural, conclui-se que "é fortemente provável" que os destroços pertençam ao iate de comércio afundado pelo submarino UB-50. Mas esta é ainda uma análise preliminar, que carece de mais investigação. Os investigadores sugerem que seja feito o registo arqueológico completo do naufrágio, até porque actualmente "cerca de 50% do barco está soterrado" no fundo arenoso, diz Alexandre Monteiro. Além de alguns elementos como tubos de esgoto em chumbo ou peças em cerâmica comum, encontram-se no local restos de artefactos de pesca. "No primeiro mergulho retirámos quase 100 quilos de material", conta.
Por estar afundada a 26 metros de profundidade, o que limita o tempo de fundo dos mergulhadores, a estrutura não é de fácil análise. O arqueólogo subaquático propõe a recolha pontual de amostras de madeira, chapa de forro e cavilhame para aprofundar o estudo da embarcação. "Existe um projecto europeu para a recolha de artefactos de madeira de barcos afundados, com um financiamento de quatro milhões de euros, e a Universidade Nova de Lisboa é uma das parceiras", diz o especialista, admitindo a possibilidade de a investigação poder ser inserida neste projecto.
Alexandre Monteiro, que é responsável pela elaboração da carta arqueológica subaquática das zonas de Grândola e de Alcácer do Sal, defende que seja criado um perímetro de protecção em torno da embarcação naufragada e que seja proibido fundear e pescar com arrasto. Além disso, e aproveitando o facto de em 2017 se cumprirem, "hipoteticamente", cem anos sobre o afundamento, o especialista recomenda que seja criada no local uma reserva arqueológica subaquática acessível e visitável por mergulhadores amadores.