Alma penada

A caminho de casa, todas as noites, passo pelos cemitérios antigos que os turistas visitam. Encontro, às vezes, uma alma penada aflita. Vestida de noiva, devidamente devorada pelos bichos, gorda e muito insuportavelmente a cheirar a suor, fica à porta observando os poucos vivos, certamente à espera que a carrinha de recolha dos mendigos a venha buscar. Há quem lhe tire fotografias, desde o outro lado da rua, sem grande aproximação, sobretudo quando ela lança os braços para dentro do cemitério, erguidos como nos filmes dos fantasmas. Nos filmes, as almas penadas atravessam portas de ferro, são indiferentes à resistência da matéria, mas esta senhora não deve ter atingido tal estádio de maturidade. Posa para as fotografias com uma humilhante incompletude. É uma morta sem talentos.

Quando a encontrei pela primeira vez, encolheu-se-me o coração ao tamanho de uma azeitona. Tive um susto triste, porque havia uma noiva morta a olhar para mim com severo abandono, como se pedisse um amor a qualquer desconhecido. Queria encará-la, passei-lhe junto, no mesmo bocadinho de chão, poderia tocar-lhe, mas ela não disse nada. Nem pude fixar demasiado o olhar, na surpresa, incomodado com o profundo desalento que me inspirou. Passo a vida a pedir mulheres em casamento. Considero as noivas as mulheres mais perto dos sonhos. Sempre quero que todas sejam felizes.

Fico a imaginar que se sente viúva de algum desses heróis nacionais. Quando nos vê pelos passeios deve verificar se regressamos de sob a terra para a abraçar. Quando nos vê, aos homens, quero dizer, deve verificar se somos alguma dessas figuras dos livros de História.

Comove-me tanto que sigo mais devagar, sempre mais devagar, para demorar a ver o que acontece. Não adianta nada, não saberia o que fazer se ela me solicitasse um abraço ou dissesse uma palavra. Mas, quando passo devagar, sinto que estou a ser seu amigo, perdendo o medo daquela presença esdrúxula, não rindo ou espalhafatando, não fazendo nenhuma fotografia à traição. Apenas a encontro como se a normalizasse no meu caminho, à porta do cemitério, dez horas da noite, a cidade demasiadamente vazia.

Certamente, também já memorizou o meu rosto escondido pela barba, indefinido na idade, demasiado agasalhado porque sou covarde contra o frio de Boston. Sou um forasteiro que, subitamente, por ali segue todos os dias. Deve pensar que poderei eternizar-me tanto quanto ela naquela visão sempre inesperada. Poderia tornar-me um cavalheiro para a sua novela oitocentista, revelador de toda a compaixão, talvez um salvador.

Os três cemitérios a caminho de minha casa são monumentos. Os americanos visitam-nos emocionados. Ainda que a rua seja uma confusão de trânsito e de gente atarefada, percebo que naqueles bocados de terra as lápides negras erguem-se magrinhas ao largo respeito de todos, como se estivesse ali criado um silêncio profundo. As pessoas caminham por entre os túmulos com cuidado nos pés, igual fossem as pedras coisas de flores delicadas. Coisas que não se podem agredir. De algum modo, todo o monumento o é por conservar uma dimensão viva daquilo que na normalidade não teria qualquer transcendência. O monumento não se acomete de normalidade. Ele perdura tão fantasmaticamente quanto a noiva que vejo de vez em quando. E as pessoas impressionam-se com o pressentir a vida que não é mais possível existir.

Fico a pensar que a noiva se dói de um amor profundo pela América. Deve ter criado a estranha personagem a partir de uma glorificação atabalhoada dos seus heróis. Está na sua dor como um elogio feito aos mortos que construíram a grande Nova Inglaterra. De qualquer maneira, a ilustração que faz é incrivelmente delicada, feminina, triste. Não consigo abstrair do facto de ser uma mulher de braços estendidos, lágrimas secas, a sofrer por um amor impossível. A mim, o amor escangalha-me qualquer lucidez histórica.

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