Cidades iluminadas: da fantasmagoria do flâneur à encenação do turista
O que muda entre o dia e a noite e o que acontece de diferente quando a cidade está iluminada? A questão é lançada pela antropóloga Filomena Silvano nesta série que tem a orientação de Pedro Lapa, director artístico do Museu Colecção Berardo
Estar fora de casa e no entanto sentir-se por todo
o lado em casa; ver o mundo, estar no centro
do mundo e manter-se escondido para o mundo
BaudelaireNum texto sobre Constantin Guys publicado em 1863, Baudelaire enunciou as primeiras características de uma figura que viria a revelar-se central para o entendimento da cultura das cidades. A figura do flâneur que deambula, incógnito e por prazer, por entre a multidão da cidade. Enquanto o faz observa, vê, contempla as paisagens “de pedra acariciadas pela bruma ou batidas pelos sopros do sol”. Nesta primeira aproximação a uma figura que nasceu para ajudar a compreender a modernidade, Baudelaire introduz alguns elementos que serão depois retomados por Simmel e por Walter Benjamin.
Nos seus textos sobre as grandes cidades, Simmel aborda por um lado a questão do anonimato — no tratamento que faz de uma outra figura seminal, a do estrangeiro — e, por outro, acentua a importância que a visão aí assume, em detrimento da audição, “nas relações entre os homens”. Referindo-se aos textos de ambos, Walter Benjamin focaliza-se na interpretação da figura do flâneur para a associar ao espaço das “passagens” parisienses — ruas comerciais, cobertas graças à emergência da arquitectura de ferro e vidro, que surgiram a partir de 1822. Essa associação traz um novo elemento para a análise: a iluminação artificial. Para Benjamin, “o aparecimento da rua como o interior onde se concentra a fantasmagoria do flâneur é dificilmente separável da iluminação a gás”. O flâneur é portanto um personagem do notambulismo que surgiu, durante o século XIX, nalgumas das grandes cidades europeias. Uma época em que, como demonstra Wolfgang Schivelbusch, a vida social se desenrolava até cada vez mais tarde e em que o lugar que cada um ocupava na hierarquia social se media pelas horas a que se deitava e se levantava: quanto mais tarde essas práticas aconteciam, mais elevada era a posição social de quem as realizava. Tudo isso aconteceu por causa da iluminação a gás.
Foi no início do século XX que surgiram as primeiras abordagens da cidade interessadas em compreender o que muda entre o dia e a noite, o que acontece de diferente quando a cidade está iluminada. Nessas abordagens a construção de si — ou, em termos mais contemporâneos, a construção das identidades pessoais — faz-se na condição do anonimato que só a grande cidade permite, mas faz-se também numa relação fantasmagórica com a cidade que a iluminação a gás sugere. Como refere Schivelbusch, a luz “dissolve as formas fixas e turva a distinção entre realidade e fantasia”. Nas “passagens” parisienses (e também nos grandes armazéns iluminados da mesma época) nasce uma nova relação com a cidade e com os objectos — entre eles as mercadorias — que passam a ser expostos envoltos numa luz que os transporta para um mundo feérico (o que está em causa não é a relação física, a manipulação, como também não é a posse; é o olhar, o prazer de ver e o imaginário). O espaço público das cidades passou, a partir daí, a ter duas versões: a diurna e a nocturna. Como afirma Anne Cauquelin, “basta que um lugar seja iluminado para que ele aceda à existência, não iluminado para que desapareça da superfície urbana.”
No entretanto a luz a gás desapareceu — embora se mantenha hoje, residualmente, com intuito patrimonial — para ser substituída pela luz eléctrica. Esta é mais estável, homogénea, e pelo menos no início menos fantasmagórica. Ao mesmo tempo as cidades foram sendo cada vez mais iluminadas e a iluminação foi — à medida que na segunda metade do século XX as classes médias acederam progressivamente ao tempo livre indispensável para estabelecer uma relação de prazer com o espaço público — tomando formas cada vez mais diversificadas. Há uma iluminação, digamos, funcional — que serve para manter operacionais os canais de comunicação e para fazer a gestão do risco urbano — e há uma iluminação cénica que resultou de uma deslocação da luz de palco para o espaço público da cidade. Os turistas contemporâneos incarnam, de forma mais ou menos consciente, a personagem do flâneur. Fazem-no em espaços que são deliberadamente encenados para poderem ser os palcos dessas performances. Com o recente aparecimento de novos aparelhos digitais — que configuram uma nova forma de iluminação da cidade — deu-se ainda uma outra transformação: esses palcos passaram a ser olhados e experienciados através da mediação de ecrãs.
Mas a outra cidade, a das sombras e das vidas arriscadas, não desapareceu. É aquela onde, como afirma Richard Sennet, o olhar pode descobrir algo de inesperado e a relação com o diferente pode eventualmente acontecer; porque “a reclusão da sombra, longe de pesar, liberta” (Anne Couquelin). É por isso que no filme de João Pedro Rodrigues os jovens, que na madrugada que se segue à noite de Santo António sobem à superfície do metro em Alvalade quando as luzes se apagam e a aurora começa a iluminar a cidade, se recusam a viver nela e antes preferem partir. De ecrã móvel na mão, lago adentro.
Filomena Silvano é antropóloga, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL) e membro do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA). Integrou várias equipas de investigação e colaborou com o cineasta João Pedro Rodrigues. É autora dos livros Territórios da Identidade, Antropologia do Espaço e De Casa em Casa: sobre um encontro entre etnografia e cinema