Língua turca assobiada revela um pouco mais do cérebro humano
Espalhadas pelos vários continentes, há línguas que, além de escritas e faladas, também têm uma versão assobiada. Sim, assobiada, com toda a informação lexical e sintáctica. No Norte da Turquia, cerca de 10.000 pessoas falam desta maneira, o que tem despertado atenções.
Para os habitantes de Kusköy – “aldeia dos pássaros”, na tradução portuguesa –, que é uma povoação isolada nas montanhas do Nordeste da Turquia, a linguagem assobiada é uma alternativa de comunicação a longa distância, sem fios e que não necessita de rede nem de bateria para funcionar. Mas esta estranha forma da língua pode também servir para nos dizer mais sobre o modo como percepcionamos a linguagem. Uma equipa de investigadores da Alemanha foi ouvi-la de perto, e estudar o seu efeito no cérebro humano.
A compreensão da linguagem é um processo dominado por um dos lados do cérebro – o hemisfério esquerdo, que está associado tanto à linguagem falada como à escrita. Mas para a língua turca assobiada, isto já não se verifica: ambos os hemisférios contribuem igualmente para o processamento da informação, não se evidenciando a existência de qualquer lateralidade. Estes foram os resultados de um estudo publicado na última edição da revista Current Biology e que poderá vir a ser útil para o desenvolvimento de terapias destinadas a doentes que perderam a fala devido a acidentes vasculares cerebrais.
“Podemos provar que o turco assobiado exige uma contribuição equilibrada dos dois hemisférios”, diz o neurocientista Onur Güntürkün, da Universidade Ruhr de Bochum, na Alemanha, e um dos autores do estudo, citado num comunicado de imprensa do grupo editorial Cell Press. “O hemisfério esquerdo está envolvido, uma vez que o turco assobiado é uma forma de linguagem, mas igualmente envolvido está o hemisfério direito, pois são necessárias todas as especializações auditivas deste hemisfério para esta estranha linguagem.”
O hemisfério direito desempenha um papel fundamental na interpretação de uma linguagem com propriedades acústicas (a melodia, o tom e a frequência), como é o caso do turco assobiado. Para o provarem, os investigadores fizeram testes em 31 indivíduos falantes do turco assobiado. Estes testes de audição dicótica consistiram na escuta, através de auscultadores, de sílabas iguais ou diferentes simultaneamente em cada um dos ouvidos. O objectivo foi determinar a lateralização hemisférica durante a percepção dos sons da fala.
Quando interrogados sobre o que tinham escutado, os 31 participantes mostraram uma melhor percepção das sílabas no ouvido direito, evidenciando assim a presença clara de lateralização. E por quê o lado direito? O hemisfério esquerdo do cérebro controla o lado direito do corpo, logo, ao ser o ouvido direito o que melhor atenção selectiva apresenta, significa que é o hemisfério esquerdo (o que está associado à linguagem) que processa a informação.
Mas quando o teste se fez em kus dili – a “linguagem dos pássaros” – ou linguagem assobiada, os resultados já não foram os mesmos. O número de sílabas identificadas foi semelhante para cada um dos ouvidos, o que indica a ausência da lateralização associada à linguagem. Os investigadores pensam que esta excepção à regra se deve às propriedades da linguagem assobiada. Uma vez que depende de variáveis como a melodia, o tom e a frequência para ser compreendida, na linguagem assobiada é necessário que o hemisfério direito do cérebro, associado a sons não-verbais como a música, colabore.
A descoberta não vem desafiar as provas que associam a linguagem em geral ao lado esquerdo do cérebro, mas antes demonstra que esta assimetria é determinada pelas propriedades físicas da própria linguagem. “Não significa que tudo o que até agora pensámos sobre as assimetrias cerebrais tenha de ser mudado”, diz Onur Güntürkün ao site Ars Technica.
A língua turca assobiada conserva toda a informação lexical e sintáctica da língua turca falada ou escrita. As vocalizações verbais são convertidas para sons com variáveis acústicas, da mesma forma que na língua escrita são convertidas para símbolos. É apenas uma versão diferente da mesma língua.
Inventada por pastores que a usavam para se comunicarem a longas distâncias, esta versão da língua tem ainda hoje cerca de 10.000 falantes na região de Kusköy, graças à actividade de pastoreio que ainda faz parte do quotidiano dos habitantes, relata o linguista Julien Meyer, do Laboratório sobre a Linguagem, o Cérebro e a Cognição (em França), no seu livro Whistled Languages – A Worldwide Inquiry about Human Whistled Speech, editado em 2015 (Springer). A aldeia localiza-se num isolado vale perto da cidade de Görele, na região montanhosa na costa do Mar Negro.
“Se olharmos para a topografia, torna-se evidente a utilidade da comunicação a partir do assobio”, diz Onur Güntürkün. “Não é possível articular tão alto quanto se pode assobiar, pelo que a linguagem assobiada é ouvida a quilómetros de distância, atravessando desfiladeiros e montanhas altas.”
A popularidade da região tem vindo a aumentar devido ao festival anual da Primavera, onde é organizada uma competição de “assobiadores”. Esta atracção turística é também uma forma de preservar a linguagem assobiada, agora ameaçada com a chegada dos telemóveis. “Devido aos telemóveis, o número de falantes está provavelmente a decrescer. Muitas pessoas não sabem da existência destas línguas, e dentro das próprias populações o número de falantes é pequeno”, refere o investigador. Mas para alguns, o turco assobiado é ainda a melhor alternativa: “Telefonar custa dinheiro, assobiar é de borla”, diz Vesile Emiroglu, uma habitante de Kusköy, agora num vídeo da televisão Deutsche Welle.
Mas a linguagem assobiada pode ser útil ainda noutras situações, fora do seu ambiente natural. De Kusköy para Bochum, quando os falantes de kus dili contactam Onur Güntürkün no seu gabinete da universidade alemã, enfrentam geralmente uma barreira linguística. A secretária que lhes atende o telefone apenas fala alemão, relata a revista New Yorker. Mas a solução é simples: para se fazerem entender e serem identificados, os falantes de kus dili assobiam.
Pelo globo fora
Estão documentadas línguas assobiadas de diversos locais do mundo, por cinco continentes. Segundo indica Julien Meyer, confirmadas são já cerca de 42, num mapa que se estende da Amazónia (entre as tribos gavião, mura-pirahã e wajãpi) à Grécia, e que passa ainda pelas ilhas Canárias, onde se fala o espanhol assobiado. Foi nesta última região que anteriormente outra equipa, de cientistas espanhóis, realizou um estudo com pastores da ilha La Gomera, que pretendeu ver o que se passava no cérebro quando se usava a linguagem assobiada.
“Foi desenvolvido um estudo que usou a ressonância magnética funcional para o silbo, o espanhol assobiado da ilha La Gomera. Este estudo revelou que tanto a linguagem assobiada como a linguagem falada activavam as mesmas regiões do cérebro”, explica ao PÚBLICO Onur Güntürkün. Este anterior estudo, de 2005, não mostrou, no entanto, a contribuição de cada um dos hemisférios na linguagem assobiada, como agora demonstra a equipa alemã.
E pode este princípio da ausência de lateralidade verificar-se para as outras línguas assobiadas? “Embora eu não o possa saber, pois apenas o turco assobiado foi testado, é muito provável que isto se aplique a outras línguas assobiadas. A razão é que o nosso hemisfério direito é especializado para as características físicas dos sinais acústicos típicos dos sinais assobiados.”
Onur Güntürkün, que ganhou o prémio Gottfried Wilhelm Leibniz em 2013 como um dos pioneiros da biopsicologia, tem vindo a estudar a aprendizagem motora, o medo, o processo de tomada de decisões ou até o beijo, ou melhor, de que lado da cara é que as pessoas começam por se beijar. O objectivo é sempre perceber como é que a percepção, o pensamento e a acção se formam no cérebro. E é assim também agora para a linguagem assobiada.
“Embora sendo turco, nunca tinha ouvido falar da linguagem assobiada”, conta ao site Ars Technica. O investigador turco-germânico soube da linguagem assobiada por um colega, quando se encontrava na Austrália. “Soube instantaneamente que a natureza tinha providenciado o método perfeito para se verificar a teoria da assimetria [cerebral] na percepção da linguagem.”
A dificuldade em fazer estudos como este está associada à raridade das linguagens assobiadas. Mas obtidas estas primeiras conclusões, a equipa pretende agora testar os mesmos parâmetros avaliando a actividade cerebral com outras técnicas, como electroencefalografia. Keelin Murray, investigadora da Universidade de St. Andrews, no Reino Unido, e sem ligação ao trabalho de Onur Güntürkün, fala ainda ao site Ars Technica” da importância da continuação destes estudos: “Este é um bom passo inicial, que será futuramente melhorado com medidas mais objectivas, como exames de imagiologia ao cérebro.”
Os resultados poderão vir a ser úteis para o desenvolvimento de tratamentos de pessoas que perderam a fala após sofrerem um AVC. Para os doentes que tiveram o hemisfério esquerdo de cérebro afectado, sabe-se que cantar pode ser uma alternativa para continuar a comunicar e recuperar a fala. Onur Güntürkün sublinha a importância da linguagem assobiada nestes casos, segundo uma notícia no site da revista Science: “Estou à espera que pessoas que tiveram um AVC no hemisfério esquerdo possam continuar a comunicar com o turco assobiado.”
Enquanto se espera pela continuação das investigações, a vida na aldeia de Kusköy segue o seu curso normal. “O Güntürkün manda cumprimentos”, diz Mayor no vídeo. “Envia-lhe os meus também. Quando é que ele se vai embora?”, pergunta Küçük, para o outro lado do vale. “O professor vai-se embora amanhã”, responde Mayor. “Ok, manda-lhe os meus melhores cumprimentos.” Tudo em turco assobiado.
Texto editado por Teresa Firmino