Um dedo mindinho conta que descemos das árvores mais cedo do que se pensava
Um humano já com algumas características modernas andava entre outros hominídeos há 1,8 milhões de anos na Tanzânia. Ou, pelo menos, um humano com uma mão moderna. A história foi contada por um osso do dedo mindinho desta espécie ainda desconhecida.
“A falange tem um aspecto muito actual e, estatisticamente, não se pode diferenciar de um elemento análogo ao de qualquer pessoa viva hoje em dia”, diz, à agência espanhola Sinc, Sergio Almécija, paleontólogo da Universidade George Washington (EUA) e um dos autores do estudo publicado na última edição da revista Nature Communications.
O estudo liderado por David Uribelarrea, da Universidade Complutense de Madrid, questiona as etapas iniciais da evolução humana, pressupondo que espécies do género Homo com características modernas conviviam com outras menos evoluídas. Neste caso, o dono da falange moderna partilhou o seu tempo de vida com o Paranthropus boisei e o Homo habilis.
O desfiladeiro de Olduvai, o local da descoberta, é um dos mais importantes sítios paleoantropológicos. Em 1959, foi lá identificado, pela célebre família Leakey, o primeiro fóssil na África Oriental de um australopiteco (com quase 1,8 milhões de anos, o fóssil pertencia a um Australopithecus boisei). Também neste local, nos anos 60, a família Leakey encontrou um fragmento de crânio de outro humano com 1,6 milhões de anos: o fóssil representava o primeiro membro do género Homo a ser descoberto, e foi designada a espécie por Homo habilis, para evidenciar o facto de este humano fabricar instrumentos.
Ao longo dos milhares de anos de evolução, de quadrúpedes a bípedes e das árvores à vida em terra, a mão dos hominídeos foi-se alterando para se adaptar a novas condições. Hoje, a mão humana é uma das características anatómicas mais importantes e distintivas da nossa espécie.
“A nossa mão evoluiu para nos permitir uma enorme variedade de gestos e manipulações, como não existe em qualquer outro primata”, diz à agência de notícias AFP Manuel Domíngues-Rodrigo, da Universidade Complutense de Madrid e também autor do estudo. “Esta capacidade de manipular objectos com precisão interagiu com o nosso cérebro e permitiu o desenvolvimento da inteligência, sobretudo graças à invenção e ao uso de ferramentas.”
O osso encontrado é a falange proximal do quinto dedo – ou seja, a parte do dedo mindinho mais próxima da palma da mão. E o que tem de diferente esta falange com 1,8 milhões de anos? Não apresenta a curvatura típica dos ossos das mãos de outras espécies do género humano, uma característica partilhada com gorilas e chimpanzés, e que lhes permitia subir às árvores com mais facilidade. Esta falange assemelha-se antes à de uma mão moderna e evidencia a adaptação à vida terrestre.
“A mão dos primatas reflecte adaptações tanto para manipulação como para locomoção, portanto um osso deste período [o início do Pleistoceno] é muito importante para se entender a transição para o modo de vida humano”, diz Sergio Almécija. “O grau de curvatura da falange encontrada é muito inferior, pelo que a espécie à qual pertenceu já tinha feito a transição de meio arbóreo para um modo de vida puramente terrestre.”
Pensa-se que a transição para o bipedismo terá acontecido há seis milhões de anos, e que até há cerca de dois milhões de anos todas as espécies do género Homo (que surgiu há 2,8 milhões de anos) tinham os ossos das mãos curvos. Ou pelo menos, assim indicavam os dados até agora existentes. Mas a nova falange veio contar que, afinal, alguns hominídeos desceram das árvores mais cedo do que se pensava.
“Uma mão antiga igual à mão humana moderna dir-nos-ia quando os humanos se tornaram totalmente terrestres e quando e com que eficiência os seus antepassados usaram ferramentas”, explica ao site Live Science Manuel Domínguez-Rodrigo.
“Certamente, [a espécie de hominídeo à qual pertence a falange] usava as mãos para fazer as mesmas tarefas que actualmente executam grupos de humanos que vivem em ecossistemas parecidos”, sublinha ainda Sergio Almécija.
O osso agora descoberto pertenceu à mão esquerda de um adulto de estatura semelhante à do Homo erectus. Com 3,6 centímetros de comprimento, a falange tem “o mesmo tamanho de um osso equivalente da nossa mão”, diz Manuel Domínguez-Rodrigo.
O dono da falange mediria cerca de 1,75 metros, segundo estimam os investigadores, uma altura bastante superior à dos contemporâneos do seu género. No entanto, prever o tamanho da mão desta espécie e mesmo a sua estatura é algo incerto e que gera controvérsia dentro da comunidade científica. Para fazer estes cálculos, os investigadores fizeram uma extrapolação a partir do tamanho das falanges.
“Tendo em conta que as falanges constituíam mais de 50% da mão – 14 ossos de um total de 27 –, há quase dois milhões de anos mais de metade da mão era completamente moderna”, diz Sergio Almécija.
Se esta nova espécie de humanos tiver a estatura prevista pelos investigadores, então vem explicar alguns mistérios arqueológicos antigos. “Os arqueólogos reuniram informação suficiente para concluir que sítios com os primeiros hominídeos, como o Olduvai, eram locais para onde estas espécies transportavam animais caçados com mais de 350 quilogramas”, diz Manuel Domínguez-Rodrigo. “Como especialista nesta área, sempre tive dificuldade em compreender como é que o Homo habilis, que não media muito mais que um metro, poderia caçar animais tão grandes.”
A descoberta abre a possibilidade de ter existido uma espécie realmente capaz de caçar e transportar animais do tamanho que as provas arqueológicas evidenciam. “A nova descoberta mostra agora que uma criatura maior e mais moderna existiu no tempo em que se formaram estes locais arqueológicos”, acrescenta Manuel Domíngues-Rodrigo. “Isto torna esta criatura um melhor candidato para explicar a formação destes locais.”
Manuel Domínguez-Rodrigo afirma ainda, em declarações ao jornal espanhol El Mundo, que a sua equipa encontrou já outros vestígios que parecem sustentar a hipótese da existência de um humano de grande estatura. “Temos outros fósseis que estão a começar a aparecer no mesmo local e que nos contam a mesma história. São fósseis de um pé de grande tamanho, que poderia pertencer ao mesmo indivíduo [da falange do dedo mindinho].”
As histórias que o tempo foi capaz de guardar na terra determinarão o caminho que será percorrido pelos cientistas para o conhecimento desta espécie humana, por agora ainda misteriosa.
Texto editado por Teresa Firmino