Um “teatro da corte” no século XXI
Enquanto a Alemanha, em finais do século XVIII, passou a exportar ópera alemã, Portugal ainda hoje se atém ao modelo da ópera importada. Pedantemente.
Entre os momentos particularmente assinaláveis da mudança, contam-se a inauguração, pelo imperador José II, do Nationalsingspiel em Viena, em 1778, e, por exemplo, a atividade do teatro da corte de Weimar, onde, sob a direção de Goethe (desde 1791), alternavam peças ditas declamadas e óperas em língua alemã (muitas delas em traduções de originais franceses ou italianos, como As Bodas de Fígaro, de Mozart). Todas subsumidas no conceito global de teatro.
Christoph Martin Wieland dá voz (em 1775) ao discurso iluminista burguês que prevaleceu. Critica a ópera como “um prazer demasiado caro” e lamenta que os governantes olhem para as artes como “um mero passatempo”, ou que, levados pelos “preconceitos duma educação pedante”, não compreendam a “interrelação das coisas humanas”. Por isso, contrapõe ao fausto da corte, com os seus castratti e outros músicos importados, pagos a peso de ouro, os modestos Singspiele, que exigiriam “tão parco investimento” que “até uma cidade mediana da Alemanha teria meios para oferecer aos seus cidadãos um prazer público da mais elevada natureza”. Havia que reconhecer a “influência muito útil no gosto e nos costumes” dos Singspiele e o seu contributo para “a promoção da humanidade”.
Assim entendida “eticamente” (Max Weber) como “missão de serviço público” (dir-se-ia hoje), a ópera alemã é um evento com consequências estruturais profundas e de longa duração. Para além da sua função cultural ou “formativa” substantiva, desencadeou emprego artístico local em larga escala e uma imensa rede de atividades produtivas correlacionadas. O seu efeito multiplicador repercutiu-se não só na esfera cultural e artística, mas também na esfera do desenvolvimento humano, social e económico. Os 50 teatros de ópera hoje existentes na Alemanha, com as suas companhias locais e espetáculos diários, são produto desse evento que ocorreu em finais do século XVIII. O seu desaparecimento seria uma catástrofe, tanto para a cultura como para a economia. Constituem (keynesianamente) um indispensável motor de ambas.
Em Portugal, tivemos muito cedo um teatro da corte em língua portuguesa: o vicentino. Mas logo escancaramos as portas a um fundamentalismo ideológico — o da Inquisição — que lhe era hostil. E, com a morte de Gil Vicente, logo desapareceu o teatro da corte em língua portuguesa.
Quando é readmitido por João V, o teatro da corte confina-se à ópera italiana, realizada por castratti e outros músicos italianos contratados para a Capela Real. Primeiro tolerada como passatempo, transforma-se com José I no suprassumo da representação faustosa do poder real. Mas tal matriz, longe de ser repudiada pela nossa burguesia, antes a seduz. Será transposta para o São Carlos em 1793: ópera italiana na presença do rei. Só companhias italianas e língua italiana até final da monarquia. Mesmo para obras de tema e autores portugueses.
Enquanto a Alemanha, em finais do século XVIII, passou a exportar ópera alemã, Portugal ainda hoje se atém ao modelo da ópera importada. Pedantemente. Perdulariamente. Um teatro que custa 40 mil euros por dia para produzir ópera só abre para a ópera 30 dias por ano.
E a “missão de serviço público” do São Carlos? Está na lei, mas ninguém faz caso. Prefere-se a jactância do desperdício a uma visão estratégica na mobilização dos recursos humanos e financeiros.
Professor catedrático jubilado (FCSH-UNL)