Ninguém fica cá para semente
Abel Barros Baptista pertence inequivocamente à elite dos cultores, definindo um estilo de cronista que, no fim, só ele materializa.
Abel Barros Baptista pertence inequivocamente à elite dos cultores, definindo um estilo de cronista que, no fim, só ele materializa. O seu traço distintivo mais evidente é a combinação entre um sentido radical do cómico e a intransigência no uso de materiais críticos e filosóficos que extravasam muito a vulgata das referências culturais mediáticas. A menos que seja ainda mais distintiva a prosa que lhe é caraterística, afinal raríssima pela intensa proximidade que desenvolve em relação a nenhum escritor português que o preceda. A ter um modelo, será Machado de Assis e a grande prosa machadiana (adjectivo até no Brasil reservado a poucos) enfrentou sempre em Portugal a resistência da ortodoxia literária que foi impondo Eça de Queirós como norma estilística do humor crítico – sendo que Portugal poderia mesmo definir-se como o país em que nem o humor crítico escapa a uma norma estilística.
O desprezo por tal norma tem em Abel Barros Baptista duas consequências notórias, tanto neste novo livro de crónicas (editadas originalmente na revista Ler) como nos anteriores A Infelicidade pela Bibliografia (2001) e Ensaios Facetos (2004). Primeira, um certo exotismo, que resulta de Portugal, nessas crónicas, ser apenas um tema entre outros e, na maior parte dos textos, nem tema ser, nem sequer assunto, mas apenas um fornecedor mais a jeito de alguns motivos para rir (entre outros, claro). De facto, não há norma estilística que não redobre uma norma temática e a perfeita anarquia dos temas é em aqui sinal da liberdade irrestrita do cronista. Pode não parecer, mas está aí um dos sentidos do título do livro: E Assim Sucessivamente.
A segunda consequência é a ausência daquele azedume ressabiado que, tarde ou cedo, arruína o fígado dos queirosianos ou bordalianos serôdios, pagos para cravar farpas no largo lombo do político nacional. O tom passional está antes próximo daquele que não será raro em certa casta de humoristas e comediantes: uma inclinação melancólica, hiper-sensível à escassa película que separa, como diz o autor na sua Nota Prévia, “o que faz todo o sentido do que não faz nenhum, o que aceitamos de bom grado do que não toleramos”. É nessa zona que ele situa a “possibilidade da facécia”, não enquanto género executado com maior ou menor habilidade, mas como “tudo o que vale a pena preservar, defender, praticar”. Com esta filosofia, afinal de contas radical, decerto não se emenda nada no mundo. Mas alguma coisa se faz tanto contra a banalidade segundo a qual, punindo os costumes (de preferência os maus), o riso serviria de corretivo ao mundo, quanto contra a vulgaridade que faz do riso mera distração que deixa tudo na mesma.
No mínimo, a possibilidade da facécia “fortalece o ímpeto, e encoraja, e entusiasma, e assim sucessivamente…”, para insistir nas palavras finais da Nota Prévia. No máximo, porém, esse mínimo basta para o efeito que talvez melhor defina a assinatura de Abel Barros Baptista e que, portanto, faz correr o risco de que tudo o que disse até aqui seja afinal secundário. Refiro-me ao efeito de aversão ao lugar-comum que tem por contrapartida a espécie de fascínio pelo lugar-comum que se sente na escolha do título deste livro. Ou não se sente, se tivermos de dizer que a expressão “e assim sucessivamente” é antes um estereotipo de linguagem que um lugar-comum.
Nuno Crato é se calhar a figura mais negativa destas crónicas e a razão não é o político nem a personagem, mas o cúmulo de banalidades que ambos significam. Na crónica O Limbo da Exigência, uma das melhores, sugere-se um “exame de acesso ao primeiro ciclo do ensino básico” ou, por outras palavras, um modo de “provar, através de exame, que [a criança] está em condições de aprender.” Dir-se-ia uma simples reductio ad absurdum do lugar-comum da “exigência” traduzida em exames, mas a verdade é que Nuno Crato já não é outra coisa, enquanto pensamento da escola, senão esse absurdo: a crónica só faz ressaltar que ele é pusilânime, um ministro que não leva às últimas consequências a única trivialidade que conseguiu converter em programa.
Levar às últimas consequências, em vez de exagerar ou desfigurar, é procedimento cómico frequente em Abel Barros Baptista. Algumas das suas vítimas, além do acordo ortográfico de 1990, são figuras da actualidade como Miguel Sousa Tavares ou o Presidente da República portuguesa, os jornalistas em geral, os colunistas do PÚBLICO ou “uma jornalista de prestígio, isto é, cultural” que na televisão perguntou ao seu convidado se sabia que ela tinha literalmente devorado o livro dele... O aspecto crítico destas crónicas está no uso de tais figuras para o processo, minucioso, de desmantelar a linguagem de que fazem um uso displicente. Estando em jogo um advérbio inadequado, a coisa soará pouco retumbante, salvo o suposto prestígio da cultura. Mas se estiver em causa a tradução de “austeridade” por “penúria” ou a demolição satírica e impiedosa do banal humanismo de George Steiner (os interessados podem ir direitos à crónica O Silêncio das Buzinas), a intensidade da irrisão aumenta.
Não há aversão à banalidade sem uma grande atenção à linguagem. E essa atenção diminui fatalmente a importância de quem fala, seja quem for que esteja a falar. Isto lembra que Abel Barros Baptista, além de cronista regular, é autor de notáveis ensaios de crítica e teoria literária e co-autor, com Luísa Costa Gomes, do romance O Defunto Elegante. Nesses domínios, a fala predomina sempre sobre o falante e a literatura continua a ensinar que a mortalidade não está na proporção inversa da loquacidade. Mas, como diz uma das crónicas do livro, Podia Ser Pior. De facto, podia: suponha-se como real o mundo que outra crónica ficciona, um mundo em que existe ou é possível que existisse uma Associação de Amizade Portugal-Angela Merkel. A crónica, felizmente, chama-se O Fim duma Amizade.