Em que medida é razoável duvidar?

É fundamental possuir um conjunto sólido de convicções/valores, que escapam à dúvida, através da fé.

Parece ser humanamente razoável de tudo duvidar, uma vez que até a melhor construção intelectual ou justificação plausível pode ser posta em causa por sermos incapazes de dar uma resposta fundamentada a todas as questões que possam surgir.

De facto, o ser humano tem uma enorme capacidade de fazer uma análise crítica dos conhecimentos e princípios considerados adquiridos socorrendo-se, para tal, da procura de inconsistências que possam existir nos mesmos.

Ao contrário da afirmação de H. Poincaré de que “duvidar de tudo ou acreditar em tudo são duas soluções igualmente cómodas que nos dispensam uma e outra de pensar”, entendemos que o ato de duvidar não é uma solução cómoda, dado que exige um raciocínio que sustente essa mesma dúvida. Pelo contrário, acreditar em tudo revela um conformismo que pode traduzir-se numa atitude de comodismo, tal como refere H. Poincaré.

Contudo, ambas as atitudes impedem o conhecimento pois se, por um lado, acreditar em tudo implica a ausência de espírito crítico, confortável para muitos mas impeditivo do aprofundamento do conhecimento, por outro, o duvidar de tudo tem o mesmo fim ao impedir a construção de qualquer conhecimento, na medida em que nunca existirá uma base isenta de dúvida.

Assim, ao adotarmos a atitude do cético radical colocamo-nos completamente fora de todo o conhecimento, ou seja, a utilização de uma dúvida totalmente destrutiva e sem qualquer fim acaba por destruir toda a realidade e todas as construções teóricas, implicando para o ser humano viver sem qualquer base e, inexoravelmente, sem qualquer certeza que não possa ser contestada.

Então como ultrapassar este paradoxo? Como é possível considerar razoável de tudo duvidar mas, ao mesmo tempo, entender que essa dúvida nos pode afastar de todo o conhecimento, levando-nos ao vazio total?

Em primeiro lugar considera-se que a dúvida também deverá ter um papel construtivo, ou seja não se limitar à pura rejeição, mas sim permanecer aberta e ter sempre como ponto de partida algum conhecimento já adquirido, que se constituirá como o alicerce de novos conhecimentos.

Por outro lado, e recorrendo à teoria de Decartes, entende-se que a dúvida tem como finalidade, no processo de conhecimento, a submissão a um exame prévio, nomeadamente através do raciocínio, de verificação da veracidade e bondade dos conhecimentos adquiridos.

Exemplificando, a vida em sociedade exige que se acredite, ou pelo menos respeite, certos princípios sociais, éticos, legais, científicos, entre outros, que derivam do senso-comum, dos costumes do tempo em que vivemos e do país ou da sociedade em que nos encontramos inseridos. Ora, a aceitação desses princípios éticos e do ordenamento jurídico, existentes na sociedade, depende da utilização da dúvida enquanto garante do bom senso e da razoabilidade dessas regras. A falta deste crivo, constituído pela dúvida, deixa-nos vulneráveis, podendo o sistema ético-legal e científico em que acreditamos ser, a todo momento, destruído.

E qual é o papel da dúvida nas nossas convicções pessoais, ou seja nos valores em que acreditamos?

Neste aspeto, e para superar a dúvida que inevitavelmente nos invade, para além do raciocínio e de outros meios ao nosso alcance, temos que nos socorrer da fé, definida como um sentimento de crença em algo ou alguém, ainda que não haja nenhum tipo de evidência que comprove a veracidade da crença em causa.

De facto, para assumirmos como inquestionáveis muitos conhecimentos que, se sujeitos a uma reflexão aprofundada, descobriríamos poderem ser contraditórios, infundados, ilusórios ou mesmo falsos, o que, no limite, nos levaria a uma vida de incertezas, temos de recorrer à fé.

Com efeito, existe sempre a possibilidade de que as nossas experiências, raciocínios e crenças nos possam conduzir a eventuais conclusões erradas, pelo que é muito importante que tenhamos uma base sólida de convicções. A nosso ver essa base sólida só é adquirida se for alicerçada na fé que, por ter como componente essencial a confiança, nos permite possuir convicções, para nós indubitáveis, em que possamos alicerçar a nossa conduta.

Uma vez que a nossa vida é preenchida por ideias, sensações, sentimentos e intuições que nos vão guiando em determinado sentido, se nos interrogarmos e/ou procurarmos provar a veracidade de todas as nossas crenças caímos, inexoravelmente, em contradições, paradoxos e mesmo à negação do que se pode considerar a nossa base ideológica.

Exemplificando, podemos referir-nos a dois aspetos considerados essenciais para a nossa vida como a religião e a política. Embora possam parecer situar-se em campos totalmente diferentes, ambos apresentam semelhanças, no sentido de que exigem um ato de fé, uma vez que a razão nunca se constitui como a única base da nossa decisão.

Pode-se então concluir que duvidar de tudo não só é razoável como constitui um pressuposto essencial do nosso conhecimento. Esta afirmação não obsta a que construamos um sistema de crenças que é constituído por verdades que, do nosso ponto de vista, são inquestionáveis por terem como base a fé.

Embora estas convicções devam ser tendencialmente permanentes, constituindo os alicerces das nossas condutas, as mesmas não são imunes à evolução do conhecimento e da própria sociedade em que nos inserimos, pelo que estarão sempre sujeitas a alterações/adaptações, mais ou menos significativas, que nunca deverão pôr em causa o cerne das convicções que construímos ao longo da vida.

Concluindo defende-se, por um lado, que a utilização da dúvida se deve constituir como um método de verificação da razoabilidade/veracidade das nossas obrigações sociais e legais e não um fim em si mesma.

Por outro lado, é fundamental possuir um conjunto sólido de convicções/valores, que escapam à dúvida, através da fé, que constituem a base da maioria das nossas condutas e opções.

Jurista

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