Europa em causa

O resultado da Segunda Guerra Mundial subalternizará até hoje a nossa Europa no plano mundial.

Esta insólita percepção do continente, então ainda convicto do seu papel unificador do mundo conhecido e, ao mesmo tempo, instância suprema da consciência do nosso destino comum como História, continua a ser verdadeira numa mera perspectiva geográfica, mas deixou de o ser, a título quase mítico, na ordem propriamente cultural. Duas guerras suicidárias de dimensões ou consequências planetárias deixaram o antigo e secular continente hegemónico do mundo à beira do abismo. Salvou-nos dele o socorro, ou a intervenção decisiva nesse confronto letal, de dois países: um não-europeu, mas filho da Europa e do restante mundo, e outro europeu mas não apenas europeu, a então União Soviética. O resultado da Segunda Guerra Mundial subalternizará até hoje a nossa Europa no plano mundial. Desde 1945 até 1991, a Europa esteve como entre parêntesis entre os dois únicos vencedores da Segunda Guerra Mundial. E os efeitos desta dupla condição de sobrevivência ainda não se extinguiram, apesar dos anos que já nos separam da queda do Muro de Berlim e de Hiroxima, o primeiro acontecimento apocalíptico da História Humana. Desde então somos os sobreviventes desse apocalipse, virtual para nós europeus, mas real para todos os homens e não apenas para os japoneses.

Como europeus — sobretudo os actores principais dos dois dramas maiores do século passado — reagimos à ameaça de novos apocalipses confrontando-nos colectivamente ou quase — com a notável excepção da Grã-Bretanha — numa aventura sem precedentes: a da construção de uma Nova Europa, numa perspectiva democrática de recorte socializante ou aparentado, imposto ao mesmo tempo por uma tradição europeia já secular e pelo desafio representado então pela versão soviética da mesma tradição.

Não saberemos nunca o que seria hoje essa tentativa de inventar uma Europa realmente nova sem o colapso dramático da Segunda Guerra Mundial. A queda do Muro de Berlim, o desprendimento dos Estados Unidos em relação a essa construção, justificada antes de mais como um dique contra a ameaça (real ou imaginária) da União Soviética, impuseram um reflexo de menos imagens e pouco a pouco de real paralisia do ritmo se não da intenção mais ou menos utópica que parecia congenital ao sonho da nova Europa. Na verdade, nunca, até hoje, uma perspectiva que mereça ser designada a sério como política foi definida para dar sentido e estruturar minimamente uma efectiva “construção europeia”. Não se pode dizer que neste meio século de projecto europeu alguma coisa “não se tenha movido” no seu espaço. “Movida empírica”, e a vários níveis, existiu e existe. Mas sem conceito (tradicional e novo) que a exprima, a pense e a inove. Federação? Confederação? Alianças com efeito de realidade ou articulação nos domínios capitais da ordem financeira, económica e social (o cultural va de soi) não se adivinham, como ideias e ideais da utopia-Europa.

Fora dela, não por causa dela, mas subdeterminada por essa gestão mole das antigas motivações europeístas, ou só europeizantes, o mundo circundante e sobretudo o que sempre recebeu impulso e inspiração do modo de ser Europa mais exemplar e dinâmico, de actuação política no sentido canónico, surgem e manifestam-se fora da Europa, interpelam pelo seu sucesso a velha Europa, exemplo ou referência secular na ordem da invenção e remodelação do mundo, não só naquelas zonas outrora marginais ou sonâmbulas da civilização planetária que agora se chamam emergentes, quando algumas são mais antigas que a europeia, mas aquelas que acordaram do seu marasmo recente e tomaram consciência do seu passado de esplendor para reivindicar um “lugar ao sol da História”, de que se sentiram excluídas ou se excluíram. É um fenómeno novo, se não na história do mundo pelo menos naquela que nós evocamos com complacência como história da civilização, que nós confundimos sempre até há pouco como de essência europeia.

De repente, numa espécie de pesadelo digno das ficções mais infernais de Hollywood, eis que um tsunami histórico sem precendentes se transformou numa contestação do Ocidente em nome, não apenas de agravos reais de que os ocidentais se tenham tornado culpados, mas de agravos ou impotências de que ninguém é culpado de maneira óbvia, por serem apenas atrasos civilizacionais ou culturais sem verdadeiro sujeito.

Pouco importa, ou já é tarde, traçar a genealogia da mistura inextricável de ressentimento e paradoxal fascínio que neste momento mobiliza uma boa parte da antiga legião de “danados da terra” que o Ocidente, segundo o ressentido-mor e profeta de um ódio implacável ao Ocidente (Frantz Fanon), merece como o mau da fita da nossa História.

Pode até imaginar-se, em última análise, que esta espectacular desafeição, seguida de um paradoxal ajuste de contas mítico com um Ocidente outrora mitificado e agora em vias de desmitificação (embora não haja exemplo de cultura mais visceralmente autoculpabilizante que a do Ocidente, de que um Jean-Paul Sartre foi em tempos um insuperável exemplo), é apenas a consequência delirante, e alguns dirão justa, dessa leitura masoquista que foi durante séculos uma espécie de jogo das mais brilhantes inteligências do Ocidente. Isso em nada altera o pesadelo que a nova cruzada de um tipo novo contra um Ocidente desarmado na ordem ideológica e ética, para não dizer na sua vontade de defesa do que foram os seus valores e o seu projecto durante séculos, seja duma natureza inteiramente nova. Já não se trata de um jogo interno à cultura europeia, mas de um ataque que a põe em causa naquilo que ela pretende ser até aos dias de hoje. Que estratégia poderá inventar o nosso velho continente, ainda há um século em perigo de morte por sua própria culpa e erros, contra um adversário que não terá, em face dele nem leitura que permita aceitá-lo ou compreendê-lo nem, naturalmente vontade de poupá-lo quando chegar o momento do seu confronto inevitável e já em curso?

Ensaísta

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