A tecnocracia e a banalidade do mal
Quem fala pela voz de Grassler? Um nazi? Não. Isso seria demasiado simples.
Tratava-se duma zona da cidade previamente esvaziada dos seus habitantes não-judeus para servir como uma espécie de campo concentração urbano de judeus de várias origens, sobretudo polacos e alemães. Um muro de três metros de altura e dezoito quilómetros de comprimento isolava o gueto do resto da cidade. Quem ousasse sair era punido com a pena de morte.
De lugar de concentração, o gueto transformou-se a breve trecho em lugar de extermínio e, por fim, de trânsito para as câmaras de gás de Treblinka. No período em que Grassler exerceu as funções de adjunto ou “assessor”, a situação tornou-se extrema: os judeus morriam ao ritmo de cinco mil por mês, as ruas estavam pejadas de cadáveres e havia quem usasse os derradeiros haveres, não para matar a fome, mas sim para assegurar o supremo privilégio de morrer em casa.
Vale a pena ver a entrevista de Grassler concedida ao jornalista Claude Lanzmann. Mais ainda do que Eichmann, captado por Hanna Arendt, Grassler parece um inofensivo homem comum, que entrou na idade da reforma sem ter feito mal a uma mosca. Em estado de negação do início ao fim da entrevista, não cede um milímetro quanto à aceitação frontal de culpas. Como se não houvesse qualquer trauma que lhe pesasse na consciência (a postura do inimputável), começa por tentar esconder-se atrás da falta de memória, afirmando que, felizmente, as más recordações são apagadas naturalmente pelas boas... E explica a racionalidade da construção do muro: era precisa uma barreira de proteção que evitasse a contaminação da população da cidade pelas epidemias (sobretudo de tifo) que grassavam no gueto.
Confrontado com as responsabilidades do ocupante alemão na situação criada, alega que nada podia fazer, pois os abastecimentos disponíveis destinados ao gueto eram cada vez mais escassos. No entanto – e esse é o ponto culminante da entrevista! –, reconhece um extraordinário saldo positivo: é que, no gueto, “a autogestão funcionou bem, isso sei eu” (die Selbstverwaltung hat gut funktioniert, das weiss ich...).
Fica-se estupefacto com este comentário – para mais, vindo de um Doutor em Direito por uma universidade alemã, com o peso de uma brilhante tradição jurídica de séculos! “A autogestão (judaica) funcionou bem...” Mas como? Funcionou bem a organizar a fome e o extermínio por doença e inanição? A desatravancar de cadáveres as ruas, atirando-os para valas comuns? A selecionar os homens, mulheres e crianças que deviam ser carregados em comboios, como gado, com destino a Treblinka?
Perguntar-se-á quem fala pela voz de Grassler. Um nazi? Não. Isso seria demasiado simples: uma boa desculpa para tranquilidade de certas consciências... Mas não. Não há que demonizar o homem. Limitemo-nos a aceitar aquilo que ele realmente é: um vulgar tecnocrata. Ou melhor: um exemplo paradigmático da racionalidade tecnocrática. Meticuloso, decerto, em aplicar as regras. Por exemplo, as do racionamento: 2310 calorias por pessoa/dia para os alemães, muito menos para o Outro inferior: 634 para os polacos e apenas 184 para os habitantes do gueto. Tão meticuloso, enfim, quanto os tecnocratas que hoje impõem uma barreira de proteção à Grécia, encerrando-a também num gueto que sustenha a todo o custo o perigo de contaminação...
O mesmo padrão reproduz-se sem cessar. Não está, afinal, “provado”, como já proclamou do alto da sua auctoritas outro abalizado jurista alemão, que a austeridade na Grécia “funcionou bem”?
Professor catedrático jubilado (FCSH-UNL)