Houve alguém — neste país — que teve a distinta lata de dizer a uma pessoa que não podia entrar numa discoteca por padecer de uma deficiência ("in casu", Trissomia 21). Aconteceu em Abrantes, no dia 25 de Abril, dia em que Portugal celebra a Liberdade, provavelmente por ironia do destino.
É, claramente, uma situação de discriminação de um cidadão por ser portador de deficiência e, portanto, inconstitucional. É inconstitucional do ponto de vista jurídico, mas do ponto de vista humano é aberrante. Numa sociedade humanista, fundada sobre o respeito dos Direitos Humanos, seria sempre uma situação aberrante, não sendo sequer necessário que a Constituição previ-se a sua ilegalidade.
Todavia, o que os últimos tempos têm demonstrado é que já nem mesmo a lei é capaz de dissuadir algumas pessoas de terem comportamentos absurdamente repugnantes em relação a outras, como o racismo, a xenofobia, o desprezo pelo valor da vida humana e pela integridade física das pessoas. Isto, só para recordar que, nos últimos 15 dias, sensivelmente, assistimos, cá no luso burgo, aos comentários inqualificáveis de um professor sobre o destino a dar aos migrantes ilegais que tentam aportar em território italiano; ao homicídio de um jovem de 14 anos alegadamente por cobiça da sua roupa e do seu telemóvel; a agressões a um jovem de 16 anos durante 13 longos minutos perpetradas por colegas de escola; a umas bastonadas dadas num indivíduo por um agente policial que, entretanto, caiu em si e reconheceu que se excedeu.
Será que a lei tem de endurecer, prevendo consequências jurídico-penais mais pesadas? Não. Essa é a solução por que clamam — como um dia lhes chamou o professor doutor Costa Andrade numa aula de Direito Penal na FDUC — "os adeptos do Estado caceteiro", grupo no qual não me incluo.
Creio que estes comportamentos são originados, fundamentalmente, pela ausência de um radical ético-humanístico que a sociedade portuguesa demonstra (outras também, mas estou a debruçar-me em concreto sobre a portuguesa), apesar de querer passar a ideia de que a ele muito aspira e em direcção a ele muito se move. Esta ausência tem reflexos em todos os domínios da vida em sociedade, não só no âmbito criminal (que foi tão-somente o mote que deu azo a esta reflexão). Por isso, não é um problema jurídico, que deva ser resolvido pelo Direito — aliás, o ideal é que, de todo, o não seja! —, apesar de o Direito não escapar a ser convocado para intervir onde os outros recursos de uma comunidade falham, porque ele é o grande mar onde todos os problemas da comunidade vão desaguar quando as barragens não operam.
Não desejo viver num país legalista até à medula, onde o cidadão é perspectivado como um incapaz de sequer zelar por si e pelos seus semelhantes, tendo de ser o Leviatã a assumir essa tarefa. Igualmente, não desejo viver num país onde os indivíduos não revelam respeito pelos princípios fundamentais que subjazem ao ser humano e à comunidade em que ele se insere.
Desejo viver num país equilibrado, onde as pessoas possam viver a sua vida com liberdade para serem como são, sem que lhes seja barrada a entrada numa discoteca por isso. Desejo viver num país onde os comportamentos sejam motivados pelo respeito mútuo e não principalmente pela força dissuasora da lei.
Nada disto é impossível ou precisa de grandes meios para ser concretizado. Basta que cada um respeite a individualidade do outro, que não julgue as circunstâncias e as decisões alheias e que tenha sempre presente que o outro é, conjuntamente consigo, uma parte igualmente indispensável do "nós", esse "nós" absolutamente essencial à existência humana, esse "nós" sem o qual os animais pensantes há muito teriam desaparecido da face da Terra.