Os filhos do pó
Há 40 anos saía da antiga Saigão o último contingente militar americano. Para trás ficava um país com as marcas da guerra e muitos filhos, conhecidos como “bui doi”, “filhos do pó”.
Vo Huu Nhan estava no seu barco a vender legumes no mercado flutuante no delta do rio Mekong quando o telefone tocou. A pessoa que lhe ligava dos Estados Unidos tinha uma notícia estrondosa para lhe dar: uma base de dados de ADN ligava Vo Huu Nhan a um veterano da guerra no Vietname que poderia ser o seu pai.
Nhan, de 46 anos, sabia que o pai tinha sido um soldado americano, que se chamava Bob, mas pouco mais. “Estava a chorar”, lembrou-se recentemente Nhan. “Ao longo de 40 anos, não soube nada do meu pai, e estive finalmente com ele.”
Mas o caminho para a sua reconciliação não tem sido fácil. Os resultados positivos do teste de ADN desencadearam uma cadeia de acontecimentos que envolviam duas famílias separadas por 14 mil quilómetros e a doença do veterano, Robert Thedford Jr., vice-xerife reformado do Texas, tem dificultado o processo.
Quando o último contingente militar americano deixou a antiga Saigão — actual Cidade de Ho Chi Minh — entre 29 e 30 de Abril de 1975, deixou também um país com as cicatrizes da guerra, um povo sem saber do seu futuro e milhares de filhos. Estas crianças — metade negras, metade brancas — foram fruto de ligações amorosas com empregadas de bar, com “hooch” (como eram conhecidas as vietnamitas que limpavam as instalações militares americanas), com engomadeiras e com as mulheres que enchiam os sacos de areia que protegiam as bases americanas. Chegam agora à meia-idade com histórias tão intricadas como as dos dois países que lhes deram vida. Cresceram com o inimigo no rosto, foram cuspidas, ridicularizadas, sovadas. Foram abandonadas, enviadas para longe para viverem com outros membros das famílias ou vendidas como mão-de-obra barata. As famílias que ficavam com estas crianças eram muitas vezes forçadas a mantê-las escondidas e a raparem-lhes os cabelos louros ou os caracóis que as denunciavam. Algumas foram enviadas para programas de reeducação em campos de trabalho forçado ou acabaram como sem-abrigo a viver nas ruas.
Eram conhecidos como “bui doi”, o que significa “filhos do pó”. Quarenta anos depois, muitos continuam no Vietname, demasiado pobres ou sem qualquer prova que lhes permita candidatarem-se ao Amerasian Homecoming Act, uma lei de 1987 que deu estatuto de imigrante americano aos filhos de soldados americanos. Agora, um grupo de americano-asiáticos (amerasian, na expressão inglesa que resulta da fusão das palavras “americano” e “asiático”) acaba de se lançar numa última tentativa para reconciliar pais e filhos com o apoio de uma nova base de dados de ADN num site de genealogia.
Os que ficaram para trás têm pouquíssima informação sobre os seus pais — a maioria da documentação e das fotografias foram queimadas sob o regime comunista e as memórias foram sendo apagadas. É por isso que a única esperança está nos testes de ADN.
É Primavera na Cidade de Ho Chi Minh. As árvores de alperce, símbolo do Festival de Primavera de Tet (que marca o início do calendário lunar), estão em flor. Um sem-fim de motociclos serpenteia entre o tráfego automóvel. Lojas de moda como a Gucci cintilam ao lado de cadeias de restaurantes da KFC. Pouco ou nada resta da presença americana do passado, excepção para um helicóptero enferrujado no pátio do museu dedicado à glória comunista. Mas os segredos de família estão enterrados como minas terrestres.
A instrutora de Pilates de New Jersey Trista Goldberg, de 44 anos, orgulha-se de ser americano-asiática e é a fundadora da associação Operation Reunite (Operação Reunificar). Em 1974, foi adoptada por uma família americana e em 2001 descobriu a sua mãe biológica. Há duas primaveras reuniu 80 pessoas para fazerem testes de ADN numa casa na Cidade de Ho Chi Minh. Assim, Trista espera conseguir completar o processo de 400 pessoas que ainda têm pendentes as suas candidaturas a um visto americano. “Bastava uma reviravolta do destino e também eu seria uma dessas pessoas deixadas para trás”, diz.
Mais de 3 mil órfãos vietnamitas foram retirados do caos que se viveu nos últimos dias da guerra. A vida mudou com a lei de 1987, que permitiu a 21 mil americano-asiáticos e mais de 55 mil membros das suas famílias ficarem nos Estados Unidos. Os “filhos do pó” tornaram-se de repente “filhos de ouro”. Houve vietnamitas com posses a comprar americano-asiáticos para logo a seguir os abandonar mal chegavam aos Estados Unidos, diz Robert S. McKelvey, antigo marine e psiquiatra infantil, autor de The Dust of Life: America’s Children Abandoned in Vietnam (numa tradução literal “Os Filhos do Pó: As Crianças da América Abandonadas no Vietname”).
Foi em parte por causa de fraudes como esta que os Estados Unidos apertaram as regras de acesso à imigração e em resultado a atribuição de vistos teve uma descida drástica. No ano passado, foram atribuídos 13.
Nhan viajou de casa, na província de An Giang, até à Cidade de Ho Chi Minh para a sessão de recolha de ADN organizada por Trista Goldberg. É um homem pacato, um pai de cinco filhos, com a 3.ª classe, um sorriso largo e orelhas de abano. Quando ele tinha cerca de dez anos, a mãe disse-lhe que era filho de um soldado americano. “Por que é que os miúdos passam a vida a gozar comigo? Chateiam-me tanto que às vezes fico com vontade de lhes bater”, dizia Nhan à mãe. “Ela fez uma pausa e explicou-me que eu era ‘mestiço’. Parecia triste, mas os meus avós disseram que gostavam de mim na mesma, que isso não interessava.”
Depois de feitos os testes de ADN, Nhan e os outros aguardaram para ver como esta nova tecnologia os poderia levar ao sonho americano.
No Outono, Louise, a mulher de Bob Thedford, uma entusiasta de genealogia, acedeu à sua conta pessoal no site da Family Tree DNA (empresa que analisa os genes das pessoas para determinar a sua ancestralidade e que está a colaborar com o projecto de Goldberg) e teve uma grande surpresa. Havia novas informações sobre o seu marido, um link pai-filho. O filho era Nhan. Há muito que Louise suspeitava de que o marido poderia ter tido filhos nos seus tempos de soldado no Vietname, no final dos anos 1960. Pouco tempo depois de estarem casados, Louise tinha encontrado na carteira do marido a fotografia de uma mulher vietnamita. A notícia acabou por chocar mais a filha, Amanda Hazel, com 35 anos, uma assistente jurídica em Fort Worth. “Para ser honesta, devo dizer que a primeira coisa em que pensei foi: têm a certeza de que isto não é um esquema?”, recorda Hazel. Pouco tempo depois, chegaram as fotografias de Nhan. Ele era igualzinho ao avô, Robert Thedford Sr., um veterano da Marinha que combateu na II Guerra Mundial. “És tal e qual o teu avô PawPaw Bob”, disse Bob ao filho.
Thedford, o robusto vice-xerife reformado do condado de Tarrant, no Texas, conhecido como “Vermelho” por causa da cor caju dos seus cabelos, conheceu a mãe de Nhan quando estava na base aérea de Qui Nhon. Tem uma vaga memória dela e a família diz que raramente falava sobre a guerra. “Ele nunca se sentava para lamentar [a guerra]”, recorda agora o enteado, John Gaines. “Quando lhe perguntava se tinha matado alguém, ele respondia: ‘Sim, mas tens de entender que havia razões por detrás disso e que fazia parte da guerra. E não vou ficar para aqui sentado a explicar-te o que é que isso significa’.”
Enquanto Thedford ensinava a filha Hazel a andar de bicicleta e a nadar no Texas suburbano, Nhan crescia na quinta de porcos dos avós, nadava no rio e era apanhado a roubar mangas. A disparidade entre estas duas vidas continua a atormentar Thedford. Diz Gaines: “Ele continua a dizer: ‘Eu não sabia’.” “Eu não sabia como poderia estar lá, ou teria encontrado maneira de estar. Só vos posso dizer que me surpreendeu e odeio tê-lo descoberto 45 anos depois.”
Seguiram-se várias tentativas de contacto, apesar de Nhan não falar inglês nem ter computador. Houve quem tivesse servido de intermediário para a troca de emails; houve trocas de encomendas. Nhan mandou sandálias feitas por ele e os chapéus típicos em cone de quem trabalha nos arrozais; os Thedford mandaram uma nota de 50 dólares e produtos dos Texas Rangers. Robert Thedford estava sempre a perguntar-lhe: “Precisas de alguma coisa?” Depois, houve a primeira e emotiva chamada por Skype, e os dois choraram quando se viram pela primeira vez. “Ele parecia-se comigo”, diz Nhan. “Senti que fiquei imediatamente ligado a ele.” Mas em Agosto último, Thedford, com 67 anos e que já tinha recebido tratamento por causa de um cancro de pele, voltou a ficar doente. O cancro tinha alastrado e foi submetido a uma série de intervenções cirúrgicas, a mais recente a 3 de Abril. À medida que a família do Texas ia tratando e cuidando dele, ia também descurando a do Vietname. Recentemente, Nhan e Hazel falaram por Skype, ele num velho e poeirento computador nas traseiras da retrosaria de um amigo, na Cidade de Ho Chi Minh, ela na sua sala com os cães a correr por ali à volta. Nhan perguntou como estava o pai. “Tem passado bem. Já se consegue sentar. Estão a tratar dele. Sinto-me mal por não te ligar, mas a mãe e o pai pensam em ti e falam muitas vezes de ti.” Enquanto estava no hospital, Thedford mostrou fotografias de Nhan às enfermeiras, dizendo: “Este é o meu filho no Vietname.”
Em Dezembro de 2013, Nhan levou os resultados dos testes de ADN ao consulado americano na Cidade de Ho Chi Minh, para que o seu processo fosse reavaliado. Não obteve qualquer resposta até agora. Um porta-voz da Secretaria de Estado diz que a legislação sobre a privacidade impede comentários sobre o caso. Hazel afirma que toda a família está empenhada em ajudar Nhan a emigrar, apesar de ela saber que a transição seria difícil. “Vai deixá-lo completamente à toa”, diz. A história deles ainda não tem um fim, assim como a guerra é uma ferida que não sarou. É uma história que continua em espiral, como a dupla hélice do ADN que os juntou.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post. Com a colaboração de Nga Ly Hien Nguyen, no Vietname, e Magda Jean-Louis e Julie Tate, em Washington