Gastão Cruz: um leitor sobrevivente

Gastão Cruz começou a ler poesia contemporânea portuguesa ao mesmo tempo que a escrevia. Na sua biblioteca está essa intimidade com a mais importante poesia da segunda metade do século XX. “Tive a sorte de ter amigos que admirava e que pude acompanhar e ler à medida que iam fazendo as suas obras”, diz.

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Miguel Manso
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Pode-se deixar de escrever, mas não de ler; quando se lê, há sempre qualquer coisa mais para acrescentar ao nosso entendimento do mundo – ainda que também a experiência da leitura, com o tempo, mude. Para Gastão Cruz, as leituras são, hoje, uma espécie de diálogo com o dia-a-dia, com o que está a escrever no momento, com o que lhe interessa pesquisar, com o trabalho que faz como um dos directores da revista Relâmpago (a já mais longeva revista de poesia em Portugal, publicada desde 1997, pela Fundação Luís Miguel Nava), com os livros que lhe aparecem em casa porque lhe são enviados, por exemplo, por jovens poetas, e, ele, que já foi um jovem poeta, recebe-os então a todos.

Quando ele era um muito, muito jovem poeta, começando aos 14, 15 anos a escrever sonetos como os de Antero de Quental, tinha um amigo de quem fala como se falasse de Rimbaud, só que Rimbaud escreveu o que não escreveu, deixando muito escrito, e o seu amigo não tinha deixado nada. Esse incumprimento do talento, a noção dessa enorme injustiça, nunca está perdida num homem, como ele, que já perdeu muitos amigos que ainda tinham muito para escrever: por exemplo, Luís Miguel Nava, assassinado aos 37 anos, e que tinha deixado em testamento o pedido de criação de uma fundação e a ajuda de Gastão Cruz para isso.

Talvez seja preciso contar sempre, entre as leituras de uma vida, as não leituras.

Sobre esse amigo, do qual não sabemos e não saberemos o nome, com quem partilhou o que chama “voracidade” pela literatura, a arte, a cultura, enquanto cresciam em Faro, Gastão Cruz escreveu um poema, A leitura, que apareceu em 1963 no livro A Doença. Nele, a leitura aparece como qualquer coisa que nos pode tomar o corpo, como um vírus, uma bactéria, um bicho que se vai alimentar do hospedeiro. Evoca o estado de transe que todos os grandes leitores conhecem da infância e da adolescência, quando nada mais importa do que o universo que temos nas mãos, podendo ser mais real do que a própria realidade, ou, pelo menos, mais essencial.

Faz também pensar em longas férias de Verão e na praia, onde os livros se consomem com sensualidade e uma certa indulgência. Mas o poema, diz Gastão Cruz, é mais literal do que isso – e relata uma história verdadeira que soa quase a um relato de uma imolação pela leitura: “Foi no Verão de 1960 ou 1961. Esse meu amigo teria, creio, o que hoje se chama 'bipolaridade' e alternava momentos de depressão com momentos de grande excitação. Um dia, apareceu na praia, em Faro, com vários livros de Fernando Pessoa e leu incessantemente: leu em voz alta, poemas uns atrás dos outros, num estado de exaltação, quase de êxtase. E essa intensidade da leitura dele impressionou-me muito.”

Esse amigo acabou por se suicidar e tinha sido a pessoa com quem tinha feito toda uma descoberta do mundo; de que existiam bibliotecas, pequenas ou grandes, nas casas das pessoas, e que nelas existiam livros e que neles se podiam descobrir poemas, romances, histórias de grandes compositores de música clássica, de pintores e imagens dos seus quadros – tudo o que havia, não só para saber, mas para sentir, podia passar pelas folhas dos livros.

Escreveu, a partir dessa memória do amigo lendo na praia, esse poema em três partes, que termina: “De mais tenta ele / extrair do corpo voz / com que dizer o / fogo todo // De mais ele traz esta / luz de agosto / para ajudar / ao fogo posto // De mais ele canta / de mais ele vê as folhas / Ao livro / sobe a luz do corpo // A ferocidade todo o sangue o corpo / usam na / leitura / demasiado fogo”

Gastão Cruz era outro tipo de leitor, era já um leitor sobrevivente, mas no resto da sua obra vão passando imagens de páginas e uma sugestão de luminiscência, e de calor e de frio, como se os livros fossem objectos vivos.

 

Sobreviver

“Já me sinto um sobrevivente”, diz. “Tive a sorte de ter amigos que admirava – e que continuo a admirar – e que pude acompanhar e ler à medida que iam fazendo as suas obras, algumas delas fundamentais na história da poesia portuguesa. E depois fui vendo esses amigos desaparecerem.”

Gastão Cruz é um homem mais frágil do que as fotografias – e, sobretudo, a sua poesia – fazem supor. Vive no mesmo apartamento, num prédio do Lumiar, desde o final dos anos 60.

A janela da sala tem vista para outras janelas de outros prédios, uma vista de cidade-cidade, uma vista de um ideal fora de moda. Há 50 anos, no início dos anos 60, quando veio de Faro para Lisboa, provavelmente o futuro parecer-lhe-ia melhor, mas o futuro parece sempre melhor na juventude – e para os jovens poetas, então, parece talvez predestinado.

É uma casa simples, e a sala também, parecendo ser sobretudo frequentada por livros (que estão depois espalhados pelo resto da casa e gravemente acumulados no escritório). Tem uma mesa redonda com um candeeiro de leitura e um sofá. Tem um quadro com o Soneto fiel – “Vocábulos de sílica, aspereza,/
Chuva nas dunas, tojos, animais / Caçados entre névoas matinais, /A beleza que têm se é beleza.” “Passado a limpo para o Gastão Cruz ter na parede” pela mão de Carlos de Oliveira (1921-1981), outro poeta e amigo, outro desaparecido (tem, ainda na parede, uma pintura do mesmo poeta); tem vários mortos.

Há uma região da sua biblioteca onde tem a poesia, e, dentro da poesia, territórios íntimos, que podiam ser uma espécie de memento mori da literatura portugesa da segunda metade do século XX. Pega num exemplar de Aquele Grande Rio Eufrates (1961), que lhe ofereceu Ruy Belo (1933-1978), com emendas feitas à mão pelo próprio Ruy Belo. Tem dois exemplares de Cobra (1977), emendados à mão por Herberto Helder (1930-2015), editado pela &etc, um com a dedicatória “Para o Gastão, que assistiu às várias metamorfoses deste livro e opinou, esta nova forma” e o outro, dizendo: “Esta segunda – e espero que definitiva – via.”

A conversa com Gastão Cruz termina com a mesa redonda da sala repleta de livros, entre eles um exemplar da Poesia 61, que começou como um projecto de revista e acabou como cinco cadernos encapados juntos, cada um deles contendo um livro de um grupo de amigos: Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), Luiza Neto Jorge (1939-1989), Casimiro de Brito, Maria Teresa Horta, e o próprio Gastão Cruz, com o seu primeiro livro, A Morte Percutiva. Quando veio para a Faculdade de Letras de Lisboa estudar, Gastão Cruz conheceu logo a Fiama Hasse Pais Brandão, com quem se viria a casar, a Luiza Neto Jorge, e pouco depois, a Maria Teresa Horta, e a Poesia 61 aparece entre Lisboa e Faro, desenhada pelo pintor algarvio Manuel Baptista, impressa na mesma tipografia onde António Ramos Rosa (1924-2013), depois de ter chegado ao Algarve, vindo de Lisboa, começou a fazer os Cadernos do Meio-Dia, uma pequena revista de poesia que publicava poetas contemporâneos. No número um, de 1958, pode ler-se o Canto nupcial, apresentado como um “fragmento”, de Herberto Helder, que viria a pertencer a O Amor em Visita, que se tornaria um poema icónico para aquela geração: “Dai-me uma jovem mulher com a sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue. Com ela / encantarei a noite.”

Foi nessa pequena revista que pela primeira vez Gastão Cruz leu os poetas que viriam a definir a poesia da segunda metade do século XX. Leu Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Jorge de Sena. Ele próprio, a Fiama Hasse Pais Brandão e a Maria Teresa Horta aparecem no quinto e último número dos Cadernos do Meio-Dia. Foi em Faro que Ramos Rosa editou o seu O Grito Claro, numa colecção a que chamou simplesmente A Palavra, e o encontro não só com a poesia de Ramos Rosa mas com o mundo que o Ramos Rosa trazia com ele para uma pequena cidade como Faro marcou Gastão Cruz. Foi nessa altura que começou também a perceber que ler poesia, tanto quanto escrever poesia ou editá-la podia ser subversivo, tudo o que mostrasse um mundo novo era perigoso e isso não tinha só a ver com o facto de viverem em ditadura.

Quando conheceu Ramos Rosa, foi a primeira vez que entrou na casa de alguém e viu torres de livros, uma biblioteca que não estava circunscrita, que era como a própria casa, para ser vivida em todas as divisões, a toda a hora. Era uma biblioteca parecida com a que Gastão Cruz tem hoje, e a uma longa distância da que foi a biblioteca do seu pai, com os clássicos portugueses e alguns poetas algarvios. 

Na sua biblioteca, de frente para a poesia, Gastão Cruz tem alguma ficção e muito teatro, herdeiro do longo período em que fez adaptações para teatro, encenações e dirigiu o Teatro da Graça. A sua biblioteca é também um caminho pela literatura inglesa que estudou e pelo período que passou em Londres, como leitor de português do King's College. Os livros que leu são a sua bibliografia, a sua história e o seu tempo, tanto ou mais do que os livros que escreveu. 

Gastão Cruz é um sobrevivente, sim – tinha acabado de morrer Herberto Helder quando nos encontrámos, e os poetas parecem estar sempre a desaparecer, surpreendentemente depressa, porque, mesmo com muita idade, nunca chegam a velhos –, e são os sobreviventes aqueles que mais pistas deixam para os leitores seguintes, nessa longa linhagem de amantes da palavra atravessando os séculos. 

 Esta série, O que lêem os escritores, é publicada no primeiro domingo de cada mês


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