O mordomo do país

A discussão ideológica sobre as “simpatias” fascistas de Fernando Pessoa enfrentada num volume que fazia falta

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O pensamento político de Pessoa, embora devedor de um nacionalismo muito século XIX, é irredutível a qualquer ideologia organizada

Não será fácil apontar falhas ao livro organizado por José Barreto. É indiscutível que ele fazia falta e o próprio autor sublinha que o volume “culmina quase uma década de pesquisa e edição dos escritos políticos e sociológicos de Fernando Pessoa”. Na Ática, em 2011, tal trabalho deu origem ao volume Associações Secretas e Outros Escritos e agora Sobre o Fascismo, a Ditadura Militar e Salazar reúne o essencial dos textos mais ideológicos de Pessoa.

Essa produção diz sobretudo respeito à situação política portuguesa, em particular entre a década de 1920 e o ano em que Pessoa morreu. Não chegam a ser 15 anos, visto que a organização cronológica começa com textos que José Barreto situa em 1923 ou data posterior. Mais amplamente, estão em jogo as ditaduras de extrema-direita que tomam o poder na Europa da época, ocupando Salazar e o início do Estado Novo boa parte da atenção do escritor. Vários dos textos editados já eram conhecidos mas o poder de arrumação de uma questão que este livro atinge é raro — e está aí, sem dúvida, o cerne do seu valor filológico e crítico.

José Barreto é claro na Apresentação do livro. Trata-se de enfrentar uma discussão que se instalou nos anos 80 do século passado e que teve, já na década anterior, em Alfredo Margarido (1928-2010), intelectual de esquerda, um peculiar protagonista daquilo a que o editor chama uma “tentativa de fascistização póstuma do pensamento de Fernando Pessoa”. O volume e o ensaio introdutório trabalham para exibir o erro dessa colagem que Alfredo Margarido tentou produzir. E as qualidades argumentativas (e de leitor) de José Barreto fazem com que o trabalho seja bem-sucedido.

Que Pessoa fosse um conservador e declaradamente antissocialista e anticomunista não é ponto polémico (nem traço que o diminua como intelectual, está bem de ver). A questão está na maneira como subscreveu posições ou ideias antidemocráticas. Em particular, no modo como encontrou razões para justificar ditaduras. Que um volume da obra de um autor seja organizado apenas em função disto mostra como Pessoa não deixou, de facto, uma obra (em sentido clássico), mas um arquivo que se deixa atravessar e reorganizar segundo lógicas variáveis. José Barreto interpretou da melhor forma a posição do filólogo que, por força daquilo que está a editar, é de imediato intérprete e crítico. Para os 12 anos em causa não haverá melhor fonte para conhecer e avaliar o Pessoa político do que esta.

Nesse sentido, uma falácia que fica muito claramente desmontada é a de que, em matéria ideológica, o que Pessoa publicou seria mais relevante (mais comprometedor) do que tudo o que deixou por publicar. É argumento típico de quem não tem pensamento sobre a literatura ou de quem nunca sequer folheou o ensaio de Foucault O que é um autor? Mas também é um argumento desesperado de quem sente que muitos dos textos não publicados por Pessoa dão cabo de qualquer hipótese de converter Pessoa num fascista convicto — e não está para se dar ao trabalho de ser subtil. Quando se escreve que um ditador instalado (o texto, segundo Barreto, datará de 1932-33, tendo já sido editado em 1993 por Teresa Rita Lopes) na melhor das hipóteses “poderia ser o mordomo do país”, classificando-o como “um contabilista” e descrevendo a sua ascensão como a “cesarização de um contabilista”, não se está a construir um discurso capaz de angariar o aplauso de salazaristas. O mesmo sucede quando se diz de Mussolini (e neste caso em público, sob disfarce) que é “um primitivo cerebral”. Recorde-se que isso foi dito numa entrevista forjada por Pessoa em novembro de 1926 para o jornal Sol e que o jornal, como José Barreto lembra, foi fechado pouco tempo depois e, concretamente, um dia após a recepção pelo presidente Carmona do novo embaixador de Itália em Lisboa.

Mas a demarcação relativamente ao juízo que arregimenta Pessoa ao fascismo tem uma história e José Barreto publicara já em 2012, na revista Pessoa Plural (editada on-line), um importante ensaio que enquadra historicamente o texto que mais compromete Pessoa com posições totalitárias, ou seja, O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal, de 1928. É uma leitura extremamente cuidadosa que nunca deixa de sublinhar a proximidade de Pessoa a posições liberais e à tradição política inglesa. Sobretudo, nunca perde de vista a reação negativa dos censores militares que impediram a circulação da primeira versão do texto. O livro agora editado aprofunda essa leitura, disponibilizando os múltiplos documentos que a sustentam. 

Os impasses e projetos nebulosos em que Pessoa se vê enredado — e que José Barreto vai assinalando — têm uma raiz que também é apontada, mas que talvez ganhasse em ser mais explícita. Essa raiz é o nacionalismo pessoano e a sua dívida intelectual às teorias de tipo antropológico que herdou do século XIX. Daí vêm, de resto, a originalidade do pensamento pessoano e o tom irredutível a qualquer ideologia organizada. Pessoa produz teoria política por sua conta e risco, exibindo menos o quadrante em que está instalado do que a própria natureza da sua escrita enquanto escrita literária, porque não há literatura, em sentido moderno, que não seja sempre teoria da humanidade ou de parcelas da humanidade. O choque frontal de Pessoa com a lamentável parcela da humanidade que era, para ele, o “contabilistazinho” Salazar decorre, evidentemente, de Salazar nada ter à altura de D. Sebastião.

Tanto basta para que se recomende a leitura deste volume em paralelo com outro de Pessoa: Sebastianismo e Quinto Império, editado em fins de 2011 por Jorge Uribe e Pedro Sepúlveda. Notar a ausência desse livro importantíssimo na bibliografia de José Barreto é, afinal, apontar-lhe a falha que parecia não ter. Mas os leitores de Pessoa sabem, acima de tudo, que não há livros sem falhas, nem sequer quando se chamam Paraíso Perdido.

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