O abismo à distância

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Se de demonstração carecesse, a melhor prova da má ideia editorial que foi criar uma colecção de Ensaios sobre Pessoa é este livro de Paulo de Medeiros, que pertence a essa colecção e se apresenta em subtítulo como “ensaio sobre o Livro do Desassossego”.

De facto, não há mais básico entendimento do ensaio do que explorá-lo como género que se escreve “sobre” isto ou “sobre” aquilo. E ao mesmo tempo a pior forma de tratar Pessoa é explorá-lo como matéria suficiente “sobre” a qual escrever colecções de ensaios. Parecendo elogiá-lo, esse gesto só o diminui. O homem que não quis ser menos do que uma literatura vê-se, afinal, reduzido à condição de mero autor — sem sequer se evitar a perversa insinuação de que é um autor que rende. Ou seja, como Pessoa nunca imaginaria sem horror, um autor popular!

Isto para dizer que o lugar da escrita que se ocupa com Pessoa para o interpretar é o mesmo da escrita que se ocupa doutros autores ou de temas e tópicos que nem sejam autores. Isto é, o lugar do ensaio literário, simplesmente, e que não tem de ser “sobre” coisa nenhuma.

Mas se era numa simples colecção de ensaios que o livro de Paulo de Medeiros deveria estar, também é como simples ensaio que ele deixa mais a desejar. Segundo o autor, o livro resulta de um trabalho pedagógico em seminário que por vários anos dirigiu só sobre o Livro do Desassossego. Com a liberdade que um seminário oferece, dispensa sistematicidade e entra no texto por via de motivos, tópicos ou temas que o atravessam e que a crítica — uns mais, outros menos — tem discutido: FantasmasMemória,AlteridadesSimulacrosFragmentos... e intervalos, são títulos de alguns dos dez capítulos, até chegarmos ao último que é igual ao do livro, O silêncio das sereias.

O que causa a decepção do leitor (sobretudo do leitor de ensaios) é que, não havendo tese ou interpretação forte que articule esse sortido, também não há, dentro de cada capítulo, uma lição para reter. Mesmo quando parecia que alguma coisa iria acontecer ao Livro do Desassossego — em consequência, por exemplo, de uma frase como “OLivro do Desassossego é um texto eminentemente político” (p. 119) — sai-se do capítulo em causa com algo tão humilde como sugerir que a leitura do Livro do Desassossego é importante em 2015 para resistirmos “à degradação da cultura e ao aviltamento da sociedade” (p. 130). Mas serão precisos anos de seminário para chegar a uma conclusão dessas? E será a conclusão a mais certeira, quando é difícil conceber na obra de Pessoa texto mais anti-social, na sua poética, do que o Livro do Desassossego?

Uma das causas principais para o fraco rendimento desta série de leituras pessoanas é (sem que tenha de haver aí paradoxo) a abundância de citações e referências bibliográficas em que cada uma está submersa. Parte da bibliografia é sem dúvida útil, até como actualização da leitura crítica pessoana. Mas é no lado da teoria que as coisas pioram. Basta ver como a sugestão mais original e interessante de Paulo de Medeiros, a noção de uma “geografia do abismo” em Pessoa/Bernardo Soares (penúltimo capítulo do livro), é estragada pela rápida convocação de Alain Badiou que, nenhuma falta fazendo à “geografia do abismo”, engrena depois a convocação de muitos mais, incluindo um Fredric Jameson cujo único uso é esterilizar qualquer valor fecundo da ideia de uma “geografia do abismo”, mal ela acabara de se enunciar.

De facto, a bibliografia teórica tem aqui muitas vezes o valor de um super-ego académico. É um sintoma: parece que certo discurso crítico não consegue ler hoje os textos de há um século sem mergulhar de cabeça nos vexames daquilo a que Jameson chama “a ideologia modernista”. Medeiros mantém-se a uma saudável distância desse rumo, mas vê-se que o faz como quem, não podendo tapar os ouvidos, se amarra a um mastro para não ceder à tentação ou, pelo menos, para adiar o mais possível o instante de se atirar à água. Ora, na verdade teria sido preferível que não se amarrasse: discutir a política literária e a política estética do modernismo pessoano, através do Livro do Desassossego, poderia ter sido, arcando com todas as consequências, o método que lhe permitiria produzir aquela anamorfose consistente que Barthes defendeu como virtude da boa crítica. Assim, nem vemos o Livro do Desassossego transformado por uma efectiva leitura, nem percebemos as leis e o sentido da pouca leitura que timidamente produz.

É inevitável a comparação. Quem queira ver implicações maiores dos tópicos só aflorados em O Silêncio das Sereias tem vantagem em ler outros livros onde o Livro do Desassossego, mesmo não sendo o centro da reflexão, também está implicado numa revisão profunda do mito pessoano. Sobretudo, Os Livros de Fernando Pessoa, de Pedro Sepúlveda (Ática, 2013) e Episódios: da Teorização Estética em Fernando Pessoa (Húmus, 2012, na verdade só editado em 2014), de Rita Patrício, são os mais fortes. E, para a parte decisiva da problemática filosófica e antropológica que Paulo de Medeiros aborda com pinças desnecessárias, recomenda-se um outro ensaio que a mesma Tinta-da-China editou em 2013 e que, salvo erro, nem sequer fala de Pessoa: A Ideia de Humanidade na Literatura do Início do Século XX, de Ângela Fernandes. Com isso, podemos continuar a discussão. 

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