Alexandre O’Neill queria ficar desactualizado, mas a vida continua igual
Entre a rotina do dia-a-dia e a liberdade de não trabalhar ou de viver o amor há a poesia de Alexandre O’Neill. Na peça Portugal, Meu Remorso, criada e interpretada por Ana Nave e João Reis, não há uma linha que não seja do poeta.
Projectadas no palco, uma grande roda de bicicleta e rodas dentadas vão girando sem parar como imagens da ordem e da rotina infinita. No poema Guichê/1 ouve-se a história da relação do cidadão com a burocracia: o sujeito poético antes quer ver os funcionários preguiçarem a discutirem futebol que vê-los a trabalhar, prefere distrair o olhar pelas moscas que pousam em tinteiros que ser rapidamente atendido. “É o antidiscurso da eficácia”, diz Ana Nave ao PÚBLICO, “porquê ser-se tão eficaz, tão empreendedor? É um olhar muito lúcido contra essa coisa de ter que estar tudo tão bem em fila”. É a agitação contra a ordem estabelecida, que atravessa toda a poesia de um dos fundadores do movimento surrealista português.
Na selecção de poemas, cartas e entrevistas feitas por Maria Antónia Oliveira (autora de Alexandre O’Neill, Uma Biografia Literária, Dom Quixote, 2007), o dia-a-dia rotineiro é aquilo a que se deve resistir — “Assim devera eu ser:/ de patinhas no chão,/ formiguinha ao trabalho/ e ao tostão./ Assim devera eu ser/ se não fora/ não querer.”
“É a ideia de que não nos devemos acomodar às coisas. Há que manter uma paixão, uma revolução”, continua Ana Nave e acrescenta que o amor, que aparece também muitas vezes ao longo peça, é uma hipótese de desvio da monotonia quotidiana — “um espaço de liberdade para sair da vidinha”, diz a actriz. A vontade do encontro entre duas pessoas e da paixão física está sempre presente, e com especial força na correspondência de Alex, como se refere a si próprio nestas cartas. Aí é afoito, não há por que perder tempo: “acho que vamos ser muito felizes eroticamente”.
“O Amor é um enorme refúgio. A vida dele está atravessada por variadíssimas relações, todas elas intensas”, completa João Reis, que é devoto da poesia e da pessoa de O’Neill. “Era um cavaleiro solitário, prezava valores como a liberdade e tinha uma ternura extraordinária. Tinha uma relação com a sua obra um bocadinho desprendida: ‘desimportantizava’, não o que escrevia, mas o facto de não ser grandemente reconhecido à época pela crítica e pelos pares”, conta o actor.
“A sua poesia não tem metafísica”, continua João Reis, “tudo está à flor da pele, são coisas do quotidiano, dessa tristeza e melancolia do dia-a-dia e à qual não podemos fugir”. Há qualquer coisa popular e, por isso, facilmente reconhecível nas imagens, no vocabulário e situações de Alexandre O’Neill: o momento em que se ouve a conversa de duas senhoras nas marchas de Lisboa, ou em que descreve como se comportam as mulheres na praia. São quadros que se trazem na cabeça mesmo que nunca se tenha vivido nos anos 1980 em Portugal, porque, explicam estes actores, fazem parte de uma maneira de ser de que somos todos cúmplices.
Não havendo uma história para contar, Ana Nave e João Reis estabeleceram ligações entre os poemas, que não aparecem de forma cronológica. Encontraram 14 momentos, ora mais contemplativos, ora mais emotivos, e as projecções vídeo de Patrícia Sequeira e Duarte Elvas ajudam a criar esses espaços. Em alguns momentos, os actores e o trabalho gráfico das projecções confundem-se, como quando uma mão gigante os tentar esmagar, enquanto se ouve “perfilados de medo, agradecemos/ o medo que nos salva da loucura”. O vídeo vai ainda trabalhando com a poesia gráfica de O’Neill, que pontua versos como “vejo entrar quarta invasão francesa/ Desejo recalcado, com certeza”, ou “o manguito será por muito tempo/ o mais económico dos gestos”.
Já quase no final, sombras na tela no fundo do palco copiam os actores: quase não se distingue o real da imitação até que as silhuetas se multiplicam a ponto de se sobreporem — “são os fantasmas, a multiplicação do eu, o carácter multifacetado do poeta”, diz João Reis. Aquelas são também, diz Ana Nave, as sombras que nos perseguem a todos: “uma dor de ser português que nos acompanha, uma dor boa”.
É aí que está o amor-ódio de toda a peça — nesta melancolia que se tem, que significa uma certa inércia, e que simultaneamente se rejeita e se procura: o remorso, a “pequena dor à portuguesa/ tão mansa quase vegetal”. “Parece que andamos sempre a marcar passo, à espera de qualquer coisa que não se sabe bem o que é”, diz João Reis enquanto Ana Nave salvaguarda: “E ao mesmo tempo ele não lhe dá peso, isto não é uma amargura. Ele vê isto com muita ironia, com muito afastamento”.
Esta solidão de que “estamos todos bem servidos”, diz O’Neill, é produtiva, não só no fado, lembra João Reis, mas em todas as artes, da literatura ao cinema. Foi produtiva, afinal, para Alexandre O’Neill, que não deixou por causa dela de olhar com humor: “Vai à mercearia e compra ameixa seca./ P’ra o intestino a ameixa é levada da breca!/ O mal do Ocidente — quem há que não o sinta? —/ é não ter a tripa sempre limpa”.
Apesar da admiração dos dois actores pelo poeta, e da actualidade que reconhecem à sua obra, recusam a ideia de que Portugal, Meu Remorso seja uma homenagem ou um discurso sobre o agora do país. É simplesmente, dizem, um espectáculo com palavras de um autor de que gostam e que está esquecido.
E mesmo sem querer pôr o foco na actualidade da obra, ela aparece como se andasse sozinha. Os actores sentam-se no palco e vêem na tela as palavras de um desejo de O’Neill que não foi cumprido: “Eu tive a grande alegria de ver poemas meus completamente desactualizados depois do 25 de Abril. Mas afinal não estavam nada desactualizados, não”, diz o poeta numa entrevista em 1982. “Espero que isto um dia acabe e eu fique bem desactualizado e para todo o sempre”.