Luca Ronconi: ele inventou um teatro sonâmbulo
Jorge Silva Melo escreve aqui que foi ao abordar a neurose que Ronconi iluminou o grande repertório do século XIX.
1969, Piazza del Duomo, Milão. Orlando Furioso. Milhares de pessoas de um lado para o outro, os actores, vestidos de fantasias, em carros que se movimentavam, que voavam, cavaleiros, feiticeiras, princesas, amantes, dragões, as personagens do Ariosto cirandavam pela praça (há registo televisivo, e até na RTP o transmitiram, maravilhoso), havia cenas em simultâneo, cenas que passavam de carro para carro, era um carnaval. O teatro perdia o ponto de vista do príncipe, tudo decorria à nossa volta, estávamos antes da perspectiva, antes do bom gosto - e à grande erudição (o texto de Ariosto era revisto por Sanguinetti) juntava-se o trabalho exemplar de reinvenção de um teatro popular, de antes do teatro burguês, no esplendor da língua nova de Ariosto. Naqueles anos em que tudo parecia mudar, o Orlando terá sido a mais experimental e a mais popular, a mais antiga e a mais moderna, a mais inventiva e a mais nostálgica das apostas, a obra-prima de todos os riscos.
Mas Luca Ronconi, que já trazia consigo uns bons anos de teatro (como tímido actor, entre os maiores dos anos 50, depois, desde 63, como promissor director) teve a suprema inteligência de não fixar a fórmula e nunca, como tantos outros, aceitou transformar o trabalho em receita, o seu nome em marca. Se, agora que morreu, quisermos fixar a memória do seu trabalho, não será com os “sinais exteriores da encenação”, não será nunca pela imagem (que trabalhava com a intensa colaboração dos melhores), é que ele colocou o seu trabalho na divisão da hermenêutica, essa intangível sabedoria.
Em 1967, no congresso de Ivrea, com outros que começavam e já com a cumplicidade – que veio a ser mais do que duradoura – de Franco Quadri, Ronconi assinava o manifesto Por um Teatro Novo, texto fundador do seu teatro crítico. Que até ao fim se guiou pela experimentação e nunca pela assunção de um dogma.
Anos depois (1977-79), em Prato, conseguiu organizar um dos mais radicais projectos que houve por esta Europa, o breve Teatro Laboratorio, onde, com a colaboração de gente da arquitectura, da música, da ciência, lançou bases para reavaliar a relação entre o espectáculo e a comunidade - e trabalhou, inventando, Pasolini, Calderón, Hofmannsthal ou Ésquilo. No refluxo traumático dessa experiência única, Ronconi irá trabalhar nos mais importantes teatros europeus (os mais ricos também) entre Viena, Paris, Milão, Roma, Berlim, dirigiu Turim (onde criou um inesquecível Últimos Dias da Humanidade de Kraus), Roma e recentemente o Piccolo de Milão que herdou de Strehler, a quem nada o ligava e tudo parecia opor.
Trabalhador incansável, minucioso, artesanal, chegou a dirigir três espectáculos em simultâneo e a passar durante meses 16 horas por dia em salas de ensaio. Mas claro nunca lhe faltaram nem equipas nem meios técnicos nem financeiros, a ele que foi, pela certa, o encenador que conseguiu herdar os orçamentos mais elevados nestas décadas. Mas dificilmente podemos olhar para o seu repertório e encontrar um mundo fechado. Variava da Viagem a Reims de Rossini (em Pesaro, com Abbado e a Berganza!), até ao Sonho de Strindberg ou à Torre de Hoffmanstahl, adaptava romances impossíveis (os Karamazov, o genial Quer Pasticciaccio de via Merulana de Gadda, a Lolita de Nabokov a partir da qual fez um dos mais belos espectáculos que vi nestes vinte anos, sublime), parecia adaptar-se com desenvoltura à necessidade de continuar a fazer, continuar o teatro. E talvez por isso o seu campo tenha sido preferencialmente o do repertório, dos gregos aos isabelinos mais cruéis, dos realistas aos simbolistas, com menos Shakespeares e Tchekovs que os seus colegas, mais gente do fim dos mundos, austríacos, jacobitas, gente impossível no limite do romanesco como o De Rojas cuja Celestina dirigiu recentemente.
Em Lisboa, 1998, estreou o Esta Noite Improvisa-se de Pirandello – e no Dona Maria ainda com lágrimas nos olhos se lembram das dificuldades (ultrapassadas) da sua montagem e da sua exigência minuciosa.
Ninguém diria deste homem – tão fundamentadamente centrado numa cultura clássica - mas nos últimos anos, e instigado pela curiosidade militante do seu amigo Franco Quadri, dedicou-se a algumas das propostas mais originais da escrita contemporânea, dirigindo espectáculos a partir de Rafael Spregelburd, Edward Bond e agora Stefano Massini, cuja ambiciosa Lehman Trilogy acaba de estrear triunfalmente no Piccolo. Porque o teatro tem de continuar.
Teatro que, para ele, tanto podia ser a ópera como o drama, quase nunca a comédia. Sim, porque até quando, em homenagem devida ao seu antecessor Giorgio Strehler – fundador do Piccolo – se sentiu na obrigação de dirigir Goldoni, fê-lo a contracorrente, crepuscular, sonâmbulo, melancólico (nos Gémeos de Veneza afogados em dívidas, contratos, usurários – que vimos no CCB - no Leque, nocturno, envelhecido, como se Schubert tivesse ocupado Veneza, a de Vivaldi). Foi ao abordar a neurose que Ronconi iluminou o grande repertório do século XIX, aquele Pato Selvagem de Ibsen (há um registo vídeo especialísssimo), as suas incursões insólitas pela Viena de antes da Guerra, os seus Schnitzlers – era perfeito nesse subentendido ardente. Talvez fosse esse o seu mundo, havia nele uma melancolia que tudo tingia de cinzento, como aquele negro que há sempre no fundo dos rosas de Poussin, uma tristeza.
Mas poderíamos dizer que por vezes ele falou da felicidade, como naquele dulcíssima Aminta do Tasso que fez com os estudantes de Roma e que Lisboa viu no TNDMII em 1984. É que parte da sua vida dedicou-a ao ensino, a encontrar actores novos, a inculcar-lhes a volúpia da palavra, a luz dos corpos.
E o que fica do seu trabalho sempre inesperado serão os actores, aqueles com quem (e à imagem da sua colaboradora, a suprema Marisa Fabbri) sonhou um teatro que voava a partir da poesia. Não mais esquecerei Massimo Popolizio imóvel no centro da cena esplendorosa da sua Vida é Sonho, murmurando lentissimamente as estrofes de Sigismondo: não parecia tocar o chão, dir-se-ia sonâmbulo, distante, vindo estremunhado ainda de outros céus nocturnos. Não era o realismo o que perseguia, nem a extroversão, nunca o expressionismo: o seu radical virtuosismo era o sonho de um actor em êxtase, Santa Teresa de Bernini, Greta Garbo: olhos fechados, corpo entregue e palavra jorrando, nocturna.
Um dia, ele queixou-se-me: “já quase não há actores que consigam dizer uma tirada barroca, os mais velhos perderam o fôlego e a memória; os mais novos só vêem televisão e falam com o staccato das dobragens.” Mas ele inventou-os; nas muitas aulas que deu, nas muitas peças em que foi integrando os mais novos.
E é isso, Ronconi: a sua longa aula de encenador morre com ele (e não, já não mais desta gente, nem nunca mais haverá aquele dinheiro que tudo lhe permitia), ninguém mais saberá juntar tantos fios dispersos num único sopro crepuscular; mas ele continua nos actores (que agora terão 40 e poucos anos) que formou, acarinhou, maltratou, amou, acompanhou, seguiu, e lembro-me com admiração e ternura de Massimo Popolizio, Maria Paiato, Fausto Russo Alessi, Fabricio Gifiuni que se juntam aos mais velhos, o seu eterno e extraordinário Massimo De Francovich, claro. Serão quem irá honrar este homem discreto e íntegro, artista raro.
Luca Ronconi morreu dia 21 de Fevereiro, aos 81 anos, em Milão