Quem somos e onde pertencemos? A cultura ajuda
Ao fazer dez anos, a associação Artemrede redefiniu objectivos e quer dar prioridade a projectos junto de comunidades locais. Isso não é só pôr as pessoas no palco a fazerem de si mesmas.
Ao mesmo tempo, vincou-se a ideia de que é pela arte e pela cultura que os indivíduos ganham identidade e consciência do grupo em que estão e por isso é importante o trabalho artístico com comunidades. A conferência internacional Políticas Culturais para o Desenvolvimento assinalou os dez anos da Artemrede e quis perceber com a ajuda de investigadores, gestores e programadores culturais o que podem e devem ser os projectos artísticos com as comunidades locais.
Com dez anos de existência, a Artemrede, um projecto de cooperação cultural que integra 13 municípios da região de Lisboa e Vale do Tejo — de Tomar a Sesimbra, passando por Almada, Santarém ou Alcobaça —, percebeu que estava na altura de se reinventar e redefinir objectivos. Quando foi criada, em 2005, a Artemrede tinha como principal objectivo pôr a funcionar uma série de teatros e cineteatros reabilitados ou construídos com fundos europeus. A ideia era tornar estes espaço permanentemente activos. “Fazíamos a ponte com programação de difícil acesso para os programadores, como a internacional, por exemplo. Por outro lado, demos formação às equipas que estavam a gerir estes espaços e que não tinham formação na área da programação, técnica, arte e comunicação, planeamento estratégico”, conta ao PÚBLICO Marta Martins, directora executiva da Artemrede.
Agora que estes equipamentos culturais “já conseguem trabalhar sozinhos”, diz Marta Martins, a Artemrede definiu um plano estratégico com 10 pontos essenciais em que desenha para os próximos cinco anos uma nova forma de financiamento, uma estratégia de internacionalização, um plano de expansão a outros territórios. Tudo isto, defendeu António Matos, presidente da direcção da Artemrede, para colocar a cultura no centro da política local e o desenvolvimento territorial. Como? Com os projectos de intervenção nas comunidades a serem o centro dos próximos cinco anos da Artemrede.
“Queremos que vejam a Artemrede não como um catálogo de programação, mas como um projecto que pode tocar em várias áreas. Claro que o central é a cultura, mas queremos estabelecer parcerias com a área da educação, com a área da acção social, ou com a área do turismo”, continua Marta Martins, explicando que o objectivo é mexer com a cultura de forma a que “deixe lastro” nas comunidades e pôr em segundo plano a circulação de espectáculos em que “o artista chega à cidade, faz o espectáculo e vem embora no mesmo dia — também são precisos estes produtos, mas os teatro já os conseguem ter sozinhos”.
“Mas afinal, de que falamos quando falamos de trabalho com as comunidades?”, perguntou directamente numa das sessões Luís Costa, programador, documentarista e presidente da Binaural, a associação cultural de Nodar, uma aldeia de São Pedro do Sul. Os seus trabalhos focam-se no som e nas suas potencialidades e, respondendo à sua própria pergunta, diz que prefere projectos com uma “micro-proximidade”: trabalha sempre com quatro ou cinco pessoas e gosta que o tempo de relação entre o artista e essas pessoas seja longo. “Em trabalhos com 200 pessoas pode correr-se o risco de as pessoas parecerem os figurantes do Ben-Hur — não há cara-a-cara”, comentou.
Para Elisabete Paiva, actual directora artística da Materiais Diversos, associação cultural que actua em Alcanena, Torres Novas e Cartaxo, há que “pensar com mais originalidade” o que pode ser um projecto com uma comunidade. “O que me perturba é que a maioria das propostas que os decisores políticos fazem aos programadores e os programadores aos artistas reduzem este trabalho a espectáculos em que as ditas comunidades aparecem em palco figuradas por si mesmas”, diz ao PÚBLICO a produtora com carreira na produção deste tipo de projectos artísticos. A intervenção das pessoas de um determinado grupo social ou de uma comunidade pode acontecer apenas num momento de pesquisa e construção do projecto artístico, através de oficinas ou residências artísticas em que as pessoas são convidadas a ver e discutir regularmente em que ponto está a criação, exemplifica Elisabete Paiva.
Outro exemplo de intervenção nas comunidades pode ser a criação de espectadores em locais onde o contacto com a arte e com “a experiência de estranhamento” não é um hábito, continua Elisabete Paiva, dando o exemplo do Festival Materiais Diversos que leva “objectos artísticos internacionais e nacionais muito especializados” a Minde.
A arte é inútil e não precisa de ter qualquer função, defendem os oradores várias vezes ao longo da conferência. Mas pode provocar qualquer coisa. Marta Porto, investigadora brasileira na área das políticas de comunicação, arte e cultura, explica que ao criar-se qualquer coisa ou estar em contacto com a arte o indivíduo ganha “sentido crítico, uma noção mais perfeita do seu corpo, da sua expansão, da sua capacidade de se experimentar”. Este “sentimento artístico” que nasce da relação com a arte não se traduz, não se explica e por isso um trabalho com as comunidades que se foque numa lógica de educação para a cultura não está a ser bem feito. “ É como a performance da Marina Abramovic no MoMA: é uma pulsão. O trabalho com um ser humano é de experiência. O que interessa não é o produto, é o processo criativo.”
Para além do conhecimento de si enquanto indivíduo, John Holden, investigador na área da política cultural na City University, em Londres, explica que os benefícios destes projectos estão também no fortalecimento da consciência de que se pertence à comunidade. “O que cria um grupo é a cultura e as formas de expressão partilhadas, os lugares de encontro, os lugares onde estamos habituados a ir — tanto em teatro e concertos, como em ruas e bares”, explica ao PÚBLICO.
Marta Porto fala do projecto Bibliotecas Parque, no Rio de Janeiro, de que é directora de conteúdo, para mostrar o impacto que estas acções podem ter numa comunidade. Os pré-fabricados colocados em praças e jardins da cidade brasileira têm teatro, cinema e biblioteca com um acervo de milhares de CD, DVD e livros. Este património foi ampliado através do registo da memória da comunidade em filme, música e livro. “No futuro isto cria uma ideia de apropriação do acervo pela comunidade que não é a mesma que seria se fosse só o acervo oficial”, diz a investigadora.
Mais que pedir à cultura e à arte que contribuam para o desenvolvimento — até porque ela deve valer por si sem a necessidade de qualquer retorno, repetem os conferencistas — o que se pede à cultura é que pense o desenvolvimento, o futuro, conclui Marta Porto. “Só que nas últimas décadas a política cultural tem estado de joelhos para se submeter a uma lógica de desenvolvimento que é para muito poucos”, afirma.