Blasfémia e liberdade
Na verdade a blasfémia salva-nos e sem ela só pode sobrevir a escuridão.
No Prometeu, de Ésquilo, o herói trágico, um titã, depois de desafiar Zeus e ter sido condenado a torturas inimagináveis, depara-se com a oferta de Oceano, que o tenta convencer ao comedimento e à retratação: “Vamos, ó infeliz, afasta a cólera que sentes e busca o fim destes teus tormentos. Talvez te pareça que eu digo velharias. E contudo, Prometeu, este é o castigo de uma língua demasiado altiva. Mas tu ainda não te humilhaste nem cedes aos males e queres acrescentar mais àqueles que já tens. Se seguires o que eu te ensino, não escoucinharás contra o aguilhão ao veres que um rude monarca governa sem ter de dar contas a ninguém. E agora vou ver se posso libertar-te destas penas; mas tu fica quieto e não fales com demasiada intemperança. Ou acaso não sabes tu, tão sábio, que às línguas insensatas é infligido castigo?”.
Prometeu não desarma. O seu orgulho é inolvidável. Responde Prometeu a Oceano e às suas falinhas mansas: “Já sabia que recado este me vinha dar. Mas não é de modo nenhum indigno que um inimigo sofra por parte dos seus inimigos. Caia, pois, sobre mim o ziguezagueante raio de fogo de duas pontas; que o éter seja abalado pelo trovão e pelo furor dos ventos selvagens; que o vendaval sacuda a terra e as suas próprias raízes desde o fundo; que a onda do mar com um rude maralhar confunda os cursos dos astros celestes; que ele lance o meu corpo para o negro Tártaro, nos turbilhões inflexíveis da Necessidade - que a morte total nunca ele ma poderá dar."
Prometeu é o paradigma da insolência, aquele “que não teme a cólera dos deuses”, que deu aos mortais “honras que transcendem o que é justo” e que profecia que Zeus cairá do seu trono “por si próprio, com as suas ocas decisões”. Se, segundo Hesíodo, Prometeu rouba aos deuses o fogo para o dar aos humanos, Ésquilo vai mais longe e alarga as dádivas prometeicas à Esperança, mesmo perante a morte. Prometeu, por amor aos homens, torna-se no modelo de uma humanidade grandiosa e insolente, capaz de desafiar a ordem divina nos seus bens mais preciosos: o conhecimento e a imortalidade (mesmo que só por via da esperança).
Prometeu é, talvez, o primeiro herói blasfemo, e fá-lo com uma grandeza, uma coragem e um orgulho sem iguais. Mas não foi o único.
Sísifo também tinha fama de mentiroso, aldrabão e desafiador. Tendo solicitado a Zeus um último dia com a sua amada, após o que a devolveria ao Hades, Sísifo, logo que os seus olhos de novo nela se detiveram e inebriado pelo luminoso céu azul e pelo calor do coração, fugiu e tentou aldrabar o rei dos deuses. Como escreve Camus, “apanhado pela gola”, Sísifo teve o castigo que se sabe. Apesar de tudo, “é preciso imaginar Sísifo feliz”. Sísifo era um blasfemador de mérito e o herói da vida absurda.
Sócrates, pelo seu lado, foi condenado pela democracia ateniense, e entre outras coisas, por se recusar a cultuar os deuses da cidade e se dar à blasfémia de inventar um daimon particular, um deus só seu, que só a si lhe falava. Condenado por ateísmo e instado a trocar, como era tradição, a sua pena de morte por uma outra, mais suave (talvez o exílio), Sócrates desafiou a Cidade e alimentá-lo gratuita e vitaliciamente. Sócrates via-se a si mesmo como um moscardo, um perturbador de serviço, ao serviço da Cidade e do pensamento livre. A proposta de Sócrates era, então, mais que justa. Mas a democracia não concordou e o fundador da cultura ocidental foi condenado à morte pela cicuta.
Mas, claro, o auge da blasfémia e da heresia é o ocorrido com um nazareno, filho de um carpinteiro, algures por volta do ano 30 da era cristã, que dizia de si mesmo ser Filho de Deus, o Caminho, a Verdade e a Vida e que inspirou uma nova religião de Amor, com dois mil anos. Esta interpretação pode ser um pouco retrospetiva relativamente à vida de Jesus mas, ainda assim, não impediu que, no seu próprio tempo e diretamente, fosse acusado de “estar possuído pelos demónios” e de usar o “príncipe dos demónios” para executar os seus prodígios e milagres (Mc 3, 22). Sabe-se o que aconteceu com este personagem, conhecido como Jesus de Nazaré, entretanto ressuscitado e desse modo recusando toda a regra imposta pelo homem ou pela natureza.
Mas também se pode, ou deve, recorrer a outras tradições, paralelas, ou subterrâneas, da nossa cultura, para ilustrar as figuras da insolência, da heresia e da blasfémia. Para algumas seitas de gnósticos cristãos primitivos, o Jardim do Éden não era o paraíso mas uma prisão, de onde Adão e Eva não só não foram expulsos mas, ao contrário, de onde fugiram, com a ajuda de uma serpente, a Salvadora, contra Yhavé, tido como um arconte arrogante e totalitário, chamado Samael, “O Cego” (“O Apócrifo de João”). Imagino que se esteja a ver a inversão que assim se produz na estrutura narrativa popular (exotérica) do Génesis: o paraíso afinal é uma prisão; Yhavé é o mau da história; a serpente é a boa, na verdade a Salvadora; Adão e Eva não foram expulsos, mas fugiram. Mas, mais ainda, o herói da história seguinte não é Abel mas Caim (seria Saramago um cainista?). E assim começou a história humana.
A questão é que mesmo no contexto de uma interpretação ortodoxa do Génesis, a figura do desafio e da desobediência é essencial. A desobediência, a desobediência a Deus, funda a experiência humana da fé e da religião. Sem este corte e este salto face à transcendência divina, sem este desejo de assalto àquilo que é sagrado, que não se pode tocar (a Árvore da Vida e do Bem e do Mal, na verdade o próprio Deus), a experiência da religião e da fé nunca poderiam acontecer. Assim sendo, e paradoxalmente, só se pode crer em Deus e desejar a experiência de Deus se se lhe for externo, se se sentir relativamente ao sagrado um corte ou uma diferença, que só se pode ultrapassar de modo experiencialmente profundo na prática do desafio, que pode ter várias modalidades: desde a mais simples expressão da dúvida até à mais profunda obscenidade ou blasfémia. Daí a necessidade do pecado, entendido como separação. Em suma, sem desafio, sem pecado, sem expulsão do Éden, não há consciência do divino nem, muito menos, hipótese de salvação.
Esta experiência luminosa do rompimento das margens sociais e das próprias necessidades naturais da vida e da morte funda a experiência de liberdade política e expressiva do mundo ocidental (e não só do mundo ocidental). Se somos alguma coisa que valha a pena somos a civilização da blasfémia e da heresia, da superação das condições naturais e sociais de vida, na verdade de todos os naturalismos cristalizadores e entrópicos.
Na verdade a blasfémia salva-nos e sem ela só pode sobrevir a escuridão.
Professor do ensino secundário, doutorado em Filosofia