Je ne suis pas Boaventura
Na linha argumentativa de Boaventura Sousa Santos lateja o ensejo de culpabilizar as democracias seculares, de cujos valores tão manifestamente beneficia, e desculpabilizar o extremismo islâmico.
Boaventura, prosélito desse relativismo desesperado que coloca tudo entre aspas e dessa escola que faz do multiculturalismo um cadáver-esquisito de particularismos e tribalismos, presenteia-nos com um autêntico vazadouro de tropismos sociológicos da estirpe antiglobalização. Na sua linha argumentativa lateja o ensejo de culpabilizar as democracias seculares, de cujos valores tão manifestamente beneficia, e desculpabilizar o extremismo islâmico. O sociólogo não quer ou não consegue reconhecer que é nas sociedades ocidentais que a tolerância e o respeito pela diversidade encontram solo onde medrar, sem dúvida adubados pela má consciência que nos legaram as barbáries do século XX que refere.
Com tantos exemplos desconjuntados de realidades de países de matriz islâmica, bem podia ter referido a excepção ao caos instalado após a “primavera árabe” que configura o caso da Tunísia. O que sucedeu neste país permite-nos compreender que mesmo no mundo muçulmano fermentam correntes laicas. O povo tunisino preferiu eleger um presidente da república que foi figura grada do bourguibismo e do autoritarismo que sucedeu à independência a correr o risco de perder para as tendências islâmicas as liberdades civis e políticas conquistadas após a deposição de Ben Ali em 2011. O decano Beji Caid Essebsi foi eleito porque se apresentou com um projecto liberal e secular. E para a sua vitória foi crucial o voto das mulheres tunisinas, politicamente emancipadas, das quais saiu aliás uma candidata à presidência, Emna Mansour Karoui.
As simpatias de Boaventura são outras, como bem deixa entender: aqueles governos sul-americanos, mixórdias de neomarxismo e populismo que ele apelida de progressistas, onde cabe a psicose do regime venezuelano, social e economicamente catastrófica, e o vergonhoso assalto à constituição capitaneado por Evo Morales, presidente de um “Estado Plurinacional Boliviano” (onde há tempos uma espécie de sindicato de trabalhadores infantis, a UNATSBO, logrou obter do governo a promulgação de uma lei que permite a crianças trabalharem a partir dos dez anos). São as mesmas simpatias dos ex-assessores de Chávez que hoje lideram o Podemos, partido que ao farejar resultados eleitorais auspiciosos se apressou a cozinhar um programa social-democrata à escandinava e cujos ideólogos, sob os auspícios de Ernesto Laclau e do Centro de Estudos Políticos e Sociais Complutense, se têm empenhado em legitimar academicamente o caudilhismo sul-americano e a perpetuação no poder de chefes de estado que admiram. Eis o que o nosso sociólogo troca pelos valores ocidentais.
Fica claro, sobretudo, que para B.S.S. a sociologia se pratica com pinças. Não é possível explicar de outro modo que este tenha anulado a dimensão religiosa por trás da tragédia de Paris, como se o massacre no Charlie Hebdo não tivesse sido cometido em nome de uma entidade supra-empírica – ou do interdito que pesa sobre a sua representação – mas antes em nome de um vago e informe complexo de causas onde B.S.S. enfia desde o desemprego jovem à revolta dos jihadistas “contra tanta violência impune” perpetrada pelo Ocidente. Ao eludir o móbil religioso, B.S.S. esquiva-se à problemática de fundo e invalida a reflexão que começa por anunciar, no título do artigo, difícil. Esquece ele que os carrascos, consumado o massacre numa cidade que os viu nascer e onde gozaram de liberdade de movimentos e de expressão (inclusive para copiarem o hip-hop importado dos EUA), bradavam em nome de uma abstracção − “vingámos o profeta!”.
Quando B.S.S. desdenha dos benefícios da laicidade (que, por definição, só pode ser “sem limites”), afasta-se do que foi historicamente um dos grandes desígnios da esquerda. E ignora uma linha decisiva de pensamento que, aprofundando o weberiano “desencantamento do mundo”, mostra, com Marcel Gauchet e Charles Taylor, que foi precisamente a saída de cena da religião que abriu caminho à autonomização e consolidação dos valores democráticos que hoje tanto prezamos e dos quais, maioritariamente, não estamos dispostos a abdicar, mesmo reconhecendo as suas imperfeições – pois que foi e é o humanismo europeu senão a noção mesma da perfectibilidade do humano?
A verdade é que podemos viver sem Deus. Há mesmo quem defenda que devemos viver sem ele, e até quem sustente, no quadro mesmo do cristianismo, que é Deus que quer que vivamos sem ele; é o que faz Gianni Vattimo ao interpretar o Cristo kenótico do Evangelho como autodespojamento de Deus e sua descida, pela encarnação, ao patamar do humano. A espiritualidade, de resto, não é incompatível com a recusa de uma qualquer entidade transcendente; nem com o pensamento racional.
Contesta Boaventura a ideia de choque de civilizações. Há, certamente, choque – ou pelo menos fricção – de culturas, de “modos de ser”, nos termos de T. S. Eliot. Porque dos valores ocidentais que o sociólogo relativiza, um houve que emergiu em toda a sua grandeza nos terríveis acontecimentos em Paris: a vocação autocrítica da nossa cultura. Certamente que a autocrítica, que inclui o distanciamento irónico, a sátira e a caricatura, é um valor universal. Mas só nas sociedades ocidentais a autocrítica é exercida de forma metódica, como uma verdadeira heurística herdada da tradição iluminista que consiste em pensarmos contra nós mesmos. Falo desse voluntarismo – por vezes precipitado – com que os europeus, mesmo quando atingidos no âmago dos seus valores mais estimados, colocam em causa esses mesmos valores na tentativa de compreenderem o outro – “tudo está perdoado”, lê-se na capa do último número do Charlie, em nome da liberdade de expressão que os fanáticos não perdoaram. O problema é que a pulsão autocrítica de Boaventura se exerce a golpes de cilício e devém puro masoquismo “etnoexcêntrico”, acabando por perverter o valor mesmo da autocrítica.
O autor do artigo começa por lamentar a morte dos redactores e cartunistas do Charlie Hebdo, o tal pasquim que “aparentemente [...] não reconhecia limites para insultar os muçulmanos”. Melhor não o tivesse feito. A argumentação que desenvolve não é consonante com essa reserva inicial: apenas em abstracto se deploram essas mortes, nunca as motivações odiosas dos assassinos.
Escritor, investigador doutorado em Literatura Portuguesa (FLUP)