Uma cor como as outras?
Cada cor é uma ideia que pertence a uma dada cultura — e o preto é disso emblema, como mostra Michel Pastoureau nesta obra de vivíssima erudição
“No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era sem forma e vazia, e havia escuridão sobre a face do abismo (...). E Deus disse: ‘haja luz’ e houve luz. E Deus viu que a luz era boa, e Deus separou entre a luz e a escuridão. E Deus chamou à luz dia e à escuridão chamou noite” (Génesis, 1). A luz e a noite, o bem e o mal — a dualidade é bíblica, mesmo muito anterior. Ao dois acrescentar-se-á um terceiro, o vermelho. Vermelho e negro, a coloração comum do bicho diabo, esse anjo caído no abismo. e de muito mais. Aliás, como Michel Pastoureau sublinha em Preto — História de Uma Cor, esta nunca vem só: desdobra-se desde Newton, e o espectro ocupa no imaginário as contiguidades e declinações da cor básica. Até por razões técnicas, a arte de tingir, por exemplo, não era perfeita nem estanque. Donde, nas suas representações, o contorno do objecto colorido pode ser incerto, metamorfoseável, plástico — em si mesmo e nas diferentes valorações epocais. Do preto, dessa não cor recôndita, mortífera, houve também visões positivas que foram contudo rareando: massa fértil, matricial; caverna escura que precede e deixa fecundar a luz; Terra, um dos quatro elementos.
Pastoureau é medievalista, ocupa desde 1983 a cadeira de História da Simbólica ocidental. E neste livro fala-se das figurações simbólicas do preto no Ocidente, não se visam arquétipos universais. Desde a Antiguidade até essencialmente ao século XVIII. Em 2010, ganhou o Prémio Medicis de ensaio. Autor de uma quarentena de livros dedicados à história das cores (azul e verde), dos símbolos, dos animais — um bestiário que inclui animais preferencialmente reprovados pelos Pais da Igreja: historiografou o urso, o javali, o gato (figura escorregadia da noite, na Idade Média ainda não familiar), o corvo (inteiramente negro, o mais arguto, o adivinho, o que foi averiguar da drenagem ou não das águas do Dilúvio, e, ao contrario da pomba, não voltou com nenhuma haste de oliveira), a pega, o porco –, desenvolveu também estudos de heráldica, sigilografia, numismática. Comunicativo, entusiasmado e transdisciplinar, cruza métodos comuns da história com a filologia, a antropologia, a psicanálise, alguma semiologia para fazer falar a cor; e cada cor é uma ideia que pertence a uma dada cultura. E o preto é disso emblema.
O autor começa, à laia de advertência, por alertar o leitor de um aspecto que nem será evidente: a instabilidade do objecto de estudo, as suas metamorfoses que entrelaçam disciplinas, já para não falar da escassez de materiais para a investigação, sobretudo em tempos mais recuados, ou dos sucessivos restauros de peças, nem sempre exemplares. Aponta o exemplo controverso de um fresco mítico: a Capela Sistina. Ou ainda, e é a abordagem do filólogo, daquele que escava as camadas de sentido, que faz a arqueologia das palavras: ”Até meados da Idade Média, e por vezes mesmo depois, as diferentes línguas germânicas, como o latim, recorreram a dois termos correntes para nomear o preto e o branco (...). Com o exemplo do alemão e do inglês: o alto-alemão antigo distingue swartz (preto baço) de blach (preto luminoso) e wiz (branco mate) deblank (branco brilhante). Ao longo dos séculos, o léxico reduziu-se a uma única palavra para cada uma das duas cores: schwarz e weiss em alemão, black e white em inglês”. Foi um processo lento.”
A apreciação da cor escreve-se sob a forma da antítese e do paralelismos quanto à luminosidade, à textura, à densidade, à configuração moral e ao sagrado em vigor. O branco e o preto, claro. Mas entre estes dois emanará o vermelho e novas combinações: o vermelho e o negro que vestem um animal impuro, peludo, com cauda e cornos, isto é, o Diabo, o maligno. Mas do lado do preto existe o cavaleiro arturiano, com um elmo, sombrio, misterioso (quem será o Cavaleiro Negro?). Existe a discrição extrema, depurada, monacal. O sombrio da religião e da lei, ambas vestidas de escuro (juízes e monges). Da morte, antes de mais. O luto. Mas nada é simples nem dual — a Renascença e as mais aperfeiçoadas artes de tingir e controlar a gradação dos tons nobilitam o preto, que devirá signo de distinção.
Muitas são as oposições que Pastoureau assinala, e o leitor vai com ele, deambulando entre elas e as suas ramificações. Embora um mesmo tempo não seja necessariamente homogéneo, nem a sobreposição do preto ao mal seja perfeita. Nos séculos XII e XIII, por exemplo, inventa-se o Purgatório.
É de ler esta obra de vivíssima erudição perseguindo-se-lhe as insólitas e apaixonantes voltas e reviravoltas que recolhe, sobretudo de tempos mais recuados. Lamentando talvez que a contemporaneidade seja menos aprofundada. Não obstante a referência à sociedade industrial, às cores do fascismo e até ao ultrapreto (outrenoir) pastoso e quase incandescente de Soulages, feito à espátula. Possivelmente porque a imagem se desmultiplica já à velocidade da luz.