O futuro do design desafiado em Istambul
Até 14 de Dezembro Istambul faz-nos pensar o futuro através do design e, com ele, dá-nos esperança. Entre o “palácio branco” de Erdogan e milhares de manifestos, há muitas perguntas e caminhos possíveis nesta bienal.
Outros vão da mais benévola nova marca da Turquia lançada em Setembro à mais perversa reconstrução, sob a forma de centro comercial, de um quartel militar otomano demolido em 1940, que acabaria com o Parque de Gezi e com a Praça Taksim, o mais emblemático e politicamente activo espaço público moderno de Istambul. Foi em nome deste espaço público, mas também da democracia, da liberdade de expressão e do estado de direito que em Junho de 2013 o Parque de Gezi foi ocupado, inspirando outras manifestações por todo o país. O parque e a praça foram salvos, mas Erdogan não foi demovido do seu projecto de poder absoluto.
Na manhã em que o presidente acordou pela primeira vez na sua nova residência – cujo design, diz-se, é em grande parte do próprio – abriu a segunda edição da Bienal de Design de Istambul. Inspirada na frase do escritor francês Paul Valéry O futuro já não é o que era e na atribulada história de mais de um século de manifestos de artistas, arquitectos e designers, esta bienal veio propor a uma cidade em contínua e desordenada expansão económica, urbana e demográfica, e a uma região sob um imprevisível redesenho geopolítico e étnico, um olhar radicalmente diferente para as intenções, potencialidades e consequências do design.
Desafiar o design
A Bienal de Design de Istambul é o mais recente festival da Fundação para a Cultura e as Artes de Istambul (IKSV), criada em 1973 por um grupo de grandes empresários turcos. Além da Bienal (de Arte) de Istambul, que começou em 1987, esta fundação também organiza festivais de música, cinema e teatro. Pensada numa ótica empresarial e não como parte de uma política estatal para a promoção do design, a Bienal de Design assume-se como um contributo para o desenvolvimento do tecido industrial, da comunidade académica e da oferta cultural de Istambul. Curiosamente, desde o seu início a bienal tem desafiado qualquer lógica desenvolvimentista do design, apresentando antes o lado mais crítico e especulativo, mas também mais humanista e cosmopolita da disciplina.
Esse lado esteve patente há dois anos em Adhocracy (Adocracia), uma das duas exposições nucleares da primeira edição da bienal, cujos 60 projectos questionavam a relação entre designer, produtor e consumidor na terceira revolução industrial em que vivemos. Comissariada por Joseph Grima, o mais dinâmico curador de design e arquitectura dos nossos dias, tornou-se numa das mais influentes exposições de design dos últimos anos, sendo apresentada mais tarde em Nova Iorque e Londres (segue-se Atenas, em Maio).
Falem connosco
A preparação da bienal de 2014 começou no Verão de 2013, pouco depois da britânica Zoë Ryan, curadora de design do Art Institute of Chicago, ter sido convidada para comissariar a sua segunda edição. Ela e a curadora assistente, a canadiana Meredith Carruthers, começaram por organizar, durante o Verão quente da ocupação do Parque de Gezi, uma série de encontros, debates e “salões” com a comunidade local de designers e arquitectos chamada Talk to Us (Falem connosco), para melhor conhecerem o seu trabalho e inquietações. Paralelamente, lê-se no catálogo, lançaram em Dezembro passado um apelo internacional para propostas de “manifestos (quer sejam textos, acções, serviços, objectos, ou outra coisa qualquer) que imaginem um novo futuro”, pontos de vista que pudessem definir “novas possibilidades e pontos de urgência para o design no século XXI e mais além, enfatizando a relação complexa, porém essencial, entre o design e a vida quotidiana”.
5 andares de ideias
De um total de quase 800 manifestos recebidos e alguns convites directos foram seleccionados 53 projectos de 200 autores de mais de 20 países, sendo um terço de origem turca. Estes estão expostos até 14 de Dezembro na antiga escola primária grega de Gálata, que havia já albergado Adhocracy em 2012.
A exposição O futuro já não é o que era distribui-se pelos cinco andares do edifício e está dividida em cinco departamentos. No Departamento Pessoal destacam-se manifestos relacionados com intimidade e identidade, num questionamento claro da narrativa heróica, masculina, ocidental e até bélica dos manifestos – de Adolf Loos a Filippo Tommaso Marinetti, de Le Corbusier a Rem Koolhaas. O projecto In The Future, Everyone Will Be Heroic for 1.5 Minutes, do grupo Sarraf Galeyan Mekanik, repensa o papel do herói nos filmes de acção e jogos de computador; numa instalação interactiva, o visitante é posto em cenários heróicos, onde são feitas mudanças subtis às regras do jogo. The Moonwalk Machine—Selena’s Step, da artista, estrela pop e engenheira informática japonesa Sputniko!, questiona a representação feminina nos media japoneses com um delirante vídeo de música sobre uma super-heroína astronauta.
O departamento de Normas e Regulamentos questiona a nossa relação com o status quo, ideias de qualidade de vida e o impacto da acção humana sobre o planeta. Inclui o fascinante Incomplete Manifesto for The Night, da designer grega Clio Capeille, que nos convida a reimaginar e revisitar a noite num manifesto de 19 pontos. Designing for the Sixth Extinction, da britânica Alexandra Daisy Ginsberg, propõe dispositivos biosintéticos reparadores de paisagens tóxicas e ecossistemas em extinção.
O departamento de Recursos explora a nossa relação com o mundo material e com o progresso. Iniciativas locais – Crafted in Istambul – e internacionais – Repair Society – a uma redescoberta da manufactura e do consumo, mas também da tecnologia, como o projecto de fim de curso da francesa Coralie Gourguechon, Rebuild the Electronic and Digital Tools, ou dos sentidos, como o dicionário olfactivo NASALO da norueguesa Sissel Tolaas, a mais reputada cientista e artista contemporânea do olfacto.
Ao abordar o espaço público e a acção colectiva, os projectos do departamento de Relações Cívicas adquirem uma maior urgência face ao contexto local. Começando por #occupygezi architecture, um arquivo de desenhos das microestruturas usadas nos protestos de 2013 que, como escreve a arquitecta a historiadora turca Esra Akcan num ensaio que só por si vale o catálogo da bienal (Hatje Cantz), foram “até à data a maior mobilização de massas em nome da arquitectura”. Use of Shores, a Micro-Manifesto on Micro-Urbanisms, um sistema modular de plataformas já implementado em Izmir, desafia a legislação turca no desenho da orla marítima.
Outros projectos respondem às limitações de liberdade de expressão e ao uso da Internet impostas pelo governo de Erdogan durante os protestos de 2013, como 140journos, uma fonte participativa de notícias alternativa aos media tradicionais, ou TWTRATE, uma aplicação que mede e manifesta a influência de quem tweeta. Who Builds Your Architecture? denuncia as implicações de grandes projectos arquitectónicos nas forças laborais à escala global (o palácio branco de Erdogan não faz, ainda, parte das suas análises). Com The Moment for the Generic is Now, o único projecto português da bienal, os arquitectos fala atelier (Filipe Magalhães e Ana Luísa Soares) propõem criar um espaço genérico para ocupações específicas através de um muro de 10x3x10 metros.
Noutra sala, a pequena mostra The Exhibition as Manifesto esboça uma história das exposições de design enquanto manifestos e avalia as suas ambições e impactos. No antigo ginásio da escola fica o departamento de Transmissão, que alberga a rádio do colectivo Kontraakt e é o núcleo central de uma programação de seis semanas de workshops, conferências, passeios temáticos, um ciclo de cinema, um ambicioso calendário académico e um inovador programa educativo infantil, tudo de acesso gratuito.
Manifestos há muitos
O último andar da escola contém a instalação-performance ABC Manifesto Corporation Writers and Consultants, do disturbATI collective. É aqui que os membros deste colectivo de Roma, que se vestem e falam como vendedores de uma multinacional, dão a cada visitante um cesto de compras e o convidam a fazer o seu manifesto, escolhendo o que defende, o que odeia e um manifesto do passado para inspiração. Depois de vários outros testes terá de gritar, perante uma câmara, o manifesto criado “automaticamente” para si. A seguir o texto é destruído. A experiência é tão disparatada quanto desconfortável, tão irónica quanto inteligente. Ao misturar o absurdo dos dadaístas e a violência dos futuristas com a lógica da criatividade individual e a cultura de sucesso neoliberal, este manifesto faz uma crítica audaz a todos os outros e à própria bienal, isto sem deixar de manter, como diz um dos membros do colectivo, Matteo Locci, “a noção de que, tal como o próprio capitalismo, a bienal incorpora e se alimenta da sua própria crítica”.
Por muito alto que sejam gritados, a maioria dos manifestos não tem qualquer consequência. Para que serve então esta bienal? Uma resposta à pergunta está talvez na tabela que define o processo curatorial, a qual opõe critérios para o que constitui um manifesto – e uma ideia de design – do passado e do futuro: texto escrito/sistema aberto, opositivo/propositivo, imperativo/discursivo, utópico/enraizado na vida quotidiana, exclusivo/colectivo.
Apesar do seu título vacilante, esta bienal serve assim para pensar no design não como uma disciplina que inventa ou ajuda a vender mais coisas, casas e palácios, mas como uma actividade que oferece mais resistência do que resignação, mais consciência do que alienação, mais dúvidas do que certezas. Tendo em conta o que se constrói (e não constrói) à sua volta, oferece também algo ainda mais importante para o futuro: esperança.