A Primeira Guerra Mundial e a Queda da República. Uma relação Complexa
O fim da guerra esteve no centro do projecto autoritário de Sidónio Pais, mas as sequelas do conflito estiveram longe de ser essenciais no percurso político da direita e da extrema-direita que culminaram no golpe do 28 de Maio. Nem o apelo aos militares, constante na vida política da República no pós-guerra por parte da oposição ao Partido Democrático, nem as críticas ferozes aos erros das campanhas militares da República impediram que, nos anos 20, os rumos da política se traçassem sobre uma memória já longínqua da Grande Guerra.
1-Quase tudo foi dito sobre a Primeira Guerra Mundial entre os especialistas, mas a memória contemporânea desta é escassa em Portugal. Para dizer a verdade, se fossem alvo de um inquérito, poucos portugueses saberiam que Portugal participou nesta guerra apoteótica da modernidade, que interrompeu aquilo a que muitos cientistas sociais chamaram a primeira vaga da democratizações, afogando essa gloriosa etapa de uma globalização optimista do capitalismo liberal e do hoje tão atormentado capital financeiro.
O Portugal republicano e nacionalista conseguiu participar nesta guerra (mais europeia do que mundial, apesar do nome), com grande esforço e à revelia dos sentimentos da sociedade portuguesa, no que aliás não foi singular. Portugal não só participou nela em África e na frente europeia como a terminou com um enorme número de mortos e feridos, bem maior dos da guerra de que todos se lembram. Pequenos monumentos de homenagem aos mortos, de Naulila a La Lys, também não faltaram, mas a longa duração do Salazarismo conseguiu apagar esta “guerra republicana” de que não gostava.
Os factores que levaram a elite republicana a forçar a participação militar na Guerra mobilizaram os historiadores portugueses e deram origem a várias explicações, mais complementares, do que alternativas. Reconheça-se que o debate era importante. O que levou um País pequeno, periférico e pobre como Portugal, sem que o tenham chamado, a “querer” entrar a sério na Guerra deste 1914? A defesa do património colonial africano, sempre periclitante e ameaçado, era um factor óbvio, mas para Afonso Costa e para o Partido Democrático, o partido dominante da jovem Primeira República, outras motivações também estiveram presentes, mas a “União Sagrada” cedo se esboroou e os partidos republicanos conservadores tiraram o tapete ao ensaio de mobilização patriótica do partido dominante. Um ano e meio depois de o Governo mandar apresar os barcos alemães no Tejo já a elite republicana era apeada do poder por um bem sucedido golpe de estado conservador.
A complexa relação entre a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial e a emergência do autoritarismo moderno não pode ser reduzida àquela intuição sempre dita e redita sobre a Guerra como causa da queda da Iª República. No caso português o mais interessante em comparação foi vitória quase imediata de um golpe de Estado que tenta institucionalizar o que poderia ter sido uma bem-sucedida experiência autoritária, mas que vai sucumbir por outras clivagens que pouco têm a ver com ela.
2- Sidónio Pais, um militar e professor universitário reconvertido à vida política, membro de um partido republicano conservador, deputado e ex-embaixador em Berlim, dirigiu o golpe de Dezembro de 1917, com um programa relativamente simples: retirar Portugal da guerra.
A Ditadura de Sidónio seria derrubada um ano depois, quando o assassínio do seu chefe colocou o País à beira da guerra civil, com uma revolta monárquica no Norte. Após algumas hesitações programáticas, Sidónio enveredou por um presidencialismo populista. Ao mesmo tempo que limitou a actividade dos partidos republicanos, alterou a lei eleitoral proclamando o sufrágio universal e fez-se plebiscitar presidente. Inspirado pelos integralistas, apresentou um esboço de representação corporativa, tentou agregar alguns partidos conservadores num partido único, permitindo apenas a organização autónoma dos monárquicos e do pequeno partido católico. Após algumas hesitações iniciais perante o novo regime, dada a sua pretensão de afastar Portugal da guerra, os sindicatos foram violentamente reprimidos enveredando por uma tentativa de greve geral.
O discurso político de Sidónio, em plena crise de abastecimentos devida à guerra, foi o do antiplutocratismo, da luta contra as oligarquias partidárias, e o de um nacionalismo messiânico. Sidónio conseguiu unir conjunturalmente monárquicos e republicamos conservadores, ao mesmo tempo que utilizou os seus recursos carismáticos de forma eficaz, rodeando-se de um grupo de jovens oficiais do exército que o acompanhavam nas manifestações. Após o seu assassínio por um sindicalista rural em finais de 1918, declarou-se uma revolta monárquica no Norte, os republicanos mobilizaram o universo urbano e várias unidades militares declararam-se neutrais, permitindo a vitória dos democráticos e o regresso ao regime constitucional.
O breve consulado de Sidónio, com a sua presença carismática, com a sua mobilização da província, com o seu discurso populista, representou a primeira tentativa conseguida de mobilização popular da direita portuguesa, desde a revolução de 1910. Mas a ditadura de Sidónio, que poderia ter constituído o cimento sociológico para um fascismo mobilizador nos anos 20, foi abalada pela reabertura da clivagem monarquia-república, com a instauração da chamada Monarquia do Norte, abrindo uma chaga fatal na unidade de direita antidemocrática.
O Sidonismo constituiu no pós-guerra uma referência para o fascismo português, sobretudo para os jovens oficiais, intelectuais e estudantes republicanos de direita, que criaram diversos partidos onde o exemplo do partido de Mussolini era crescentemente referido, mas que foram sempre marginais. O outro pólo, mais importante veio do Integralismo Lusitano, este movimento de intelectuais e activistas monárquicos tradicionalistas que foram os pais ideológicos de quase tudo à direita nos primórdios do Século XX.
As primeiras tentativas golpistas dos anos 20 foram acompanhadas por um segmento civil onde pontificavam intelectuais nacionalistas. Muitos destes intelectuais eram activos participantes no movimento modernista português, caso de António Ferro, que mais tarde moderou os seus ímpetos fascistas como chefe da propaganda do regime de Salazar.
Em 1923, surgiram as primeiras publicações que se reivindicavam «do fascismo português», e criou-se o primeiro partido fascista, o Nacionalismo Lusitano, onde pontificava Castro Osório, filho de uma conhecida figura republicana, Ana de Castro Osório. Recém-licenciado em Direito, estreou-se no campo literário com algumas peças de teatro de cariz ultranacionalista. António de Cértima, escritor prolífero e colaborador regular de A Ditadura, seria o grande explorador do tema da guerra e do soldado traído pelos governos de Lisboa. Este apelo ao ex-combatente associava-se também ao apelo à juventude, à nova geração «que tem ideias para melhorar o Portugal moralmente doente» e que, como geração do «aprés guerre, é uma geração de sacrifício». Mas os Republicanos não deixaram fugir para estas caricaturas do fascismo lusitano a memória da Guerra que não foi deles.
3- Parte integrante da vaga autoritária dos anos 20 na Europa, o golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 não foi apenas uma intervenção militar de tipo pretoriano na vida política. Não foi a hierarquia militar estabelecida que decidiu derrubar mais um governo, mas uma coligação heterogénea de militares, com o apoio decidido de diversos partidos e grupos de pressão. O liberalismo republicano foi derrubado por um exército dividido e politizado, sofrendo apelos golpistas de fracções organizadas no seu interior, que iam desde os republicanos conservadores, aos católicos-sociais e à extrema-direita integralista e correlativos apêndices fascistas, particularmente influentes junto dos jovens oficiais.
O apelo aos militares foi uma constante na vida política da República no pós-guerra, por parte da oposição ao partido dominante, o Partido Democrático. Quase por definição, o sistema político republicano não teve uma "oposição leal", para usar a terminologia de um politólogo recentemente falecido, Juan Linz, já que era patente para os actores políticos que a possibilidade de chegada ao poder por via eleitoral era nula. Desde cedo que os partidos republicanos conservadores, pequenos agrupamentos de notáveis ligados a grupos de interesses, se tinham habituado a recorrer a meios extraparlamentares para se aproximarem do poder. No pós-guerra existiram alguns governos de coligação ou mesmo conservadores, mas sempre ligados a situações de crise. A radicalização dos pequenos partidos republicanos conservadores (Nacionalistas, Reconstituintes, União Liberal Republicana, etc.) foi um factor fundamental na queda da República, levando-os a "apelar aos militares", quando, na sequência das eleições de 1925, o Partido Democrático as ganhou mais uma vez. Neste espectro de pequenos partidos de quadros, emergiram algumas figuras carismáticas que juntaram a sua voz à pequena, aguerrida e elitista extrema-direita, como a Cruzada Nuno Álvares, no apelo à intervenção militar e, mais do que isso, à constituição de grupos organizados no interior das Forças Armadas. Cunha Leal foi talvez, entre os dirigentes republicanos, o mais importante.
O papel de grupos como os integralistas foi importante. Em termos de conspiração e propaganda da opção ditatorial seguramente mais do que o Centro Católico, ligado à hierarquia da Igreja e mais prudente. O movimento conducente ao 28 de Maio esboça-se como um golpe militar que cooptou uma parte da elite política do regime liberal (que, tal como muitos dos militares, tinha como objectivo expresso o futuro restabelecimento de uma ordem constitucional reformada), integrando também a "oposição desleal", e que excluiu do poder o partido dominante. O produto foi uma ditadura militar que afastou rapidamente uma parte da componente republicana, em golpes posteriores, e que viria a ser incapaz de se institucionalizar.
Portugal teve tudo o que os clássicos apontaram como as "origens" do fascismo: modernismo e futurismo, nacionalismo, traumas da primeira guerra, ofensiva operária, anticomunismo, jovens militares politizados pela extrema-direita, o fascismo avant la lettre de Sidónio Pais, massificação da política, crise de legitimidade do liberalismo e, mesmo, fascistas… Mas aqui a coligação de forças políticas que apoiaram este derrube caracterizou-se, desde o seu início, pela predominância dos partidos conservadores e de direita radical, sendo o fascismo, agora entendido como movimento, um parceiro fragmentado e menor.
Portugal chegou ao turbilhão desencadeado pela Grande Guerra sem alguns dos factores perturbadores, determinantes em outros Países Europeus. Tinha resolvido, no fundamental, a "questão nacional": "Estado" e "Nação" andavam de boas relações e coincidiam com significativa homogeneidade cultural; não conhecia minorias nacionais ou étnico-culturais no seu interior; não tinha reivindicações territoriais a fazer no espaço europeu; encontrava-se na esfera de influência britânica que garantia o seu vasto património colonial; chegou à "era das massas" sem alguns dos temas mobilizadores do radicalismo geralmente associados aos movimentos fascistas. Acresce ainda que esta "massificação da política" deve ser moderada no caso português.
Por outro lado a participação portuguesa na I Guerra não provocou danos na estrutura produtiva e social, comparáveis aos sofridos pelos contentores no centro da Europa. Não favoreceu também as condições para a emergência de grupos susceptíveis de constituir uma primeira base para movimentos fascistas, alargando o núcleo original de intelectuais que lhe deram origem. A clivagem da secularização foi talvez a mais importante das abertas pela Iª República. Desde os anos 10 que um pequeno núcleo de católicos se organizou em torno de um programa político que unia a restauração dos direitos da Igreja com uma alternativa autoritária ao liberalismo. Mesmo em termos culturais, Portugal foi um claro exemplo de como existe pouco espaço para a emergência de uma intelligentsia fascista e a Igreja e o centro católico constituíram um competidor poderoso à fascização das elites universitárias e intelectuais, ocupando um espaço político determinante na reacção antidemocrática.
Outra clivagem importante foi a do regime. O restauracionismo monárquico continuou a inibir, quer ideologicamente, via integralismo, quer no campo político, ao destruir a mobilização populista da ditadura de Sidónio Pais, a unificação política da direita antidemocrática. O IL protagonizou as bases ideológicas para um fascismo português no pós-guerra mas, preso pelo seu restauracionismo, limitou as potencialidades de mobilização do Sidonismo. Foi também a questão do regime que fracturou o entendimento entre integralistas e católicos sociais, ambos defensores de um corporativismo autoritário como alternativa ao liberalismo. No meio disto a memória da Guerra, mesmo ali tão perto, já andava longe.
António Costa Pinto é investigador no ICS-ULisboa
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