Farrobo, arroubo, roubo
O Palácio de Farrobo merece ser recuperado e devolvido, tanto quanto possível, à sua antiga glória.
A sua importância e o seu interesse advêm do homem que o mandou construir junto àquele palácio que também foi seu: Joaquim Pedro Quintela (1801-1869), empresário, milionário, mecenas, personagem real que se tornou uma das maiores figuras lendárias do século XIX em Portugal, 2.º barão de Quintela e 1.º conde de Farrobo, tendo este título sido concedido a ele por D. Pedro IV em gratidão pelo – decisivo – apoio financeiro que concedeu aos liberais durante a guerra civil com os absolutistas de D. Miguel. A sua vida e a suas obras são relatadas em pelo menos dois livros: O Conde de Farrobo, de Eduardo de Noronha (1945), e O Milionário de Lisboa, de José Norton (2009).
Joaquim Pedro Quintela distinguiu-se, entre outras actividades e qualidades, por ser um homem do teatro, ou, melhor dizendo, de teatros. O seu pai, Joaquim Quintela, 1.º barão de Quintela, foi um dos impulsionadores do Teatro São Carlos, e o filho viria a dirigir frequentemente, artística e financeiramente, aquele; aliás, a principal residência da família, o Palácio Quintela, no n.º 70 da Rua do Alecrim, fica ao lado da casa de ópera da capital, e hoje alberga o IADE; a "residência secundária" da família em Lisboa, o acima mencionado Palácio das Laranjeiras, acolhe actualmente duas secretarias de Estado, a da Ciência e Tecnologia e a do Ensino Superior. Mais: emulando precisamente o seu pai, Joaquim Pedro foi o principal dinamizador da construção do Teatro D. Maria II, inaugurado em 1846. A concepção deste edifício foi entregue ao arquitecto italiano Fortunato Lodi, primo de Mariana Lodi, primeira esposa do conde.
Porém, antes de desenhar a mais importante casa de espectáculos de Lisboa, Lodi recebeu de Quintela uma outra tarefa: a de conceber uma grande, sumptuosa, "casa de campo", que foi construída perto de Vila Franca de Xira e com vista para o rio Tejo: o Palácio do Farrobo, concluído em 1835... e que também tinha um (pequeno) teatro! Caçadas, banquetes e festas com ilustres convidados, nobres, artistas, incluindo Almeida Garrett que ali pode ter tido – numa visita que fez em 1840 – a inspiração para escrever Viagens na Minha Terra, aquele espaço foi como que um arroubo de romantismo por excelência.
Quantos neste país sabem da existência deste autêntico "irmão mais velho" do Teatro D. Maria II, há décadas em ruínas, quase completamente destruído e deixado ao abandono? Que após o 25 de Abril foi alvo de um roubo colectivo dos seus materiais e objectos, a ponto de hoje só restarem as paredes? Por aquilo que foi, por aquilo que significou, pelas pessoas que o mandaram construir e que nele passaram muitos dias e muitas noites, pela época histórica em que foi erigido, plena de acontecimentos marcantes e de mudanças significativas em Portugal, este edifício merece ser recuperado e devolvido, tanto quanto possível, à sua antiga glória... mas boas intenções expressas em disposições testamentárias têm, ironicamente, atrasado, e até impedido, esse desiderato.
A falência de Joaquim Pedro Quintela pouco antes de morrer constituiu uma tragédia pessoal e familiar que se traduziu inevitavelmente na dispersão do seu património. A 1 de Maio de 1957, quase 100 anos depois de ter sido vendido pela primeira vez, o Palácio do Farrobo foi doado por Artur de Menezes Correia de Sá à Cáritas – União da Caridade Portuguesa; a 16 de Junho de 1993 a Cáritas doou, por sua vez, o imóvel à Santa Casa da Misericórdia de Vila Franca de Xira; nas escrituras das duas doações existe uma "cláusula modal" que comete à Santa Casa a "responsabilidade de dar-lhe os fins consignados, primitivamente de ali instalar e manter (…) um recolhimento para crianças pobres e outras actividades beneficentes ou de assistência sob as suas diversas formas". E num parecer jurídico preparatório da segunda doação lê-se que "qualquer alienação a título gratuito ou oneroso não será possível, sob pena de os herdeiros virem a reclamar o direito de reversão", por incumprimento da vontade do primeiro doador. Estas informações constam de um ofício assinado por Carlos Alberto Caetano Dias, provedor da Santa Casa, com data de 15 de Maio de 2013, e emitido em resposta a uma proposta elaborada por mim e que eu apresentei, com o arquitecto David Carvalho, àquela instituição, relativa ao Palácio do Farrobo...
... E cuja premissa principal era, é, a sua reconstrução – o mais possível segundo a sua forma, o seu desenho, original – e reconversão enquanto hotel de luxo, especificamente, enquanto (mais uma) Pousada de Portugal, e, mais concretamente, com um posicionamento – comercial e cultural – definido e decisivo para a sua promoção, valorização e rentabilização: o de "hotel do Romantismo" por excelência e de "hotel das Linhas de Torres". Construído quando ainda se sentiam os "ecos" da Guerra Peninsular e a Guerra Civil havia chegado ao fim, o Palácio do Farrobo foi "testemunha" privilegiada de um dos períodos mais conturbados, mas mais apaixonantes, da história portuguesa, que englobou ainda a revolta da Maria da Fonte e a Regeneração. E, estando situado na região em que se construiu o sistema de defesa de Lisboa concebido e dirigido por Arthur Wellesley, duque de Wellington, e a curtas distâncias de todos os seus pontos fundamentais, poderia e deveria ser publicitado preferencialmente (mas não só) para o mercado anglófono, para clientes, turistas, dos países de língua inglesa, desejosos de visitar e de conhecer os locais onde o grande comandante militar esteve e, de certa forma, se preparou para derrotar Napoleão em Waterloo – triunfo cujos 200 anos se celebrarão em 2015. Excursões de autocarro poderiam partir do palácio e percorrer as Linhas de Torres, e espectáculos de reconstituição das batalhas contra os franceses poderiam ser organizados para os turistas.
Acolher e ajudar crianças e/ou idosos é sempre louvável, mas essa não é a verdadeira vocação do Palácio do Farrobo. Além de que (felizmente nesse aspecto) já não estamos nos anos 50, 70 ou 90 e, à volta da lezíria do Tejo, não há carência de instituições cujas missões e actividades são orientadas para aqueles segmentos da população – uma delas, precisamente, é a Santa Casa da Misericórdia de Vila Franca de Xira, casa venerável que faz há séculos um meritório e notável trabalho de beneficência. Entretanto, continua por resgatar um dos mais desconhecidos e deslumbrantes monumentos portugueses.