Não nos enganemos

Pela primeira vez desde Abril de 1974, a marcha do desenvolvimento e do combate às desigualdades foi forçada a recuos significativos em domínios indispensáveis ao nosso futuro, caracterizadores do nosso modelo social. O ponto de partida para ultrapassar este momento tem de assentar na assunção de que as causas do retrocesso não se encontram na narrativa esgotada que nos acusa de termos vivido acima das nossas possibilidades, mas antes num quadro europeu que dá carta-branca e salvaguarda acriticamente o setor financeiro, que penaliza os países da periferia através de erros sucessivos na gestão da moeda única, tudo embrulhando num receituário neoliberal que retira capacidade fiscalizadora e de investimento ao setor público.

O espaço da esquerda democrática não pode aceitar com resignação ficar ideologicamente refém desta leitura, aceitando-a por omissão, e o Partido Socialista, à semelhança dos seus congéneres europeus, tem de se libertar das suas amarras.

O PS tem de ser claro para poder projetar a confiança necessária a edificação de uma alternativa governativa, ao invés de aparecer apenas como o portador de uma versão macia da austeridade. Hesitações em torno da defesa da Constituição, que levaram a que o PS só tardiamente tenha aderido aos pedidos de fiscalização da constitucionalidade dos Orçamentos, sinais contraditórios quanto à justa repartição de encargos fiscais, patente na aceitação de uma reforma do IRC que alivia quem menos necessita, ou a ideia de que tem se vincular a um cumprimento escrupuloso do Tratado Orçamental, são alguns exemplos da impossibilidade de projeção de uma alternativa mobilizadora e de uma liderança clara na sua mensagem.

Parafraseando um mote lançado por António Costa, se não conseguimos evitar pensar como a direita, estaremos condenados a governar como ela. Se pretendemos rejeitar, e bem, o receituário de austeridade, não podemos mostrar uma adesão a um cumprimento escrupuloso e integral do Tratado Orçamental. Temos de questionar as suas fragilidades, sublinhar a sua incompatibilidade com o nosso modelo social e colocar os compromissos para com os cidadãos à frente dessa receita ineficaz e ideologicamente vinculada a um pensamento estranho à esquerda democrática. Só assim, se exigirmos renegociar o nosso futuro, será possível uma aposta séria e credível nas qualificações e no potencial científico, na modernização da economia, na redução das desigualdades sociais e na criação de um Estado descentralizado, desburocratizado e ao serviço das pessoas.

Mais do que listas de medidas avulsas ou propostas de purificação da política que correm de forma improvisada atrás de pulsões populistas, é fundamental ter uma mensagem integrada de resolução da crise através de políticas públicas viáveis, demonstrando capacidade de liderar um projeto governativo com um desígnio claro, com uma margem ampla de apoio e que dê resposta aos problemas que verdadeiramente afligem os Portugueses.

Tal não significa, obviamente, que não seja possível reforçar a qualidade da democracia. No primeiro Governo de Guterres, foi precisamente pela mão de António Costa que surgiu a única proposta completa de reforma do sistema eleitoral, combinando círculos uninominais (para aproximar eleitos e eleitores) e a manutenção de um número de Deputados capaz de assegurar o pluralismo da representação política dos menores partidos e de todo o território do País, sem necessidade de zurzir nas instituições democráticas à falta de (melhores) ideias.

Não nos enganemos nos adversários, não nos enganemos no diagnóstico, não nos enganemos nas prioridades. Saibamos, sim, mobilizar o imenso potencial adormecido do País. Saibamos mobilizar Portugal.

Membro do Secretariado da Concelhia do PS de Lisboa

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