"É mais simples mostrar arquitectura num museu de arte"
Vindo directamente da Bienal de Veneza, Barry Bergdoll, curador do Museum of Modern Art de Nova Iorque, passou pelo Porto, onde defendeu as possibilidades que se abrem quando a arquitectura se expõe perante grandes audiências. E também a pertinência de criar um museu à altura da "riquíssima" cultura arquitectónica da cidade de Siza e Souto Moura.
Na Bienal de Arquitectura de Veneza, sob o lema Absorbing Modernity, Rem Koolhaas convocou a história e a arquitectura do passado como estratégia para pensar o presente. Qual a sua percepção desta bienal?
star architect passa a ser um star curator?” A curadoria tem-se transformado numa palavra que serve para tudo: “curar” uma refeição, “curar” o guarda-roupa, “curar” as férias… A noção ganhou proeminência, talvez excessiva. Para além disso, Koolhaas lançou o tema com muita antecedência e procurou dar coerência aos pavilhões nacionais. Ou seja, toda a bienal se transformou numa espécie de projecto OMA [Office for Metropolitan Architecture]. Sendo um edifício construído por muitas pessoas, esta edição tem uma personalidade singular. Eu estava curioso porque quando Koolhaas toma uma coisa em mãos, transforma-a em algo com um enorme valor. O projecto de pesquisa histórica implícito em Absorbing Modernity e o grande entusiasmo que gerou deram-lhe relevância. Até porque a nossa história pode ser diferente da que associamos à primeira Bienal de Arquitectura de Veneza, A Presença do Passado, organizada por Paolo Portoghesi em 1980. Sendo historiador, naturalmente apreciei a conjugação desta colossal acumulação de material, particularmente nos pavilhões nacionais. Mas admito a minha perplexidade: vim embora e ainda não absorvi a absorção da modernidade. Continuo a procurar compreender qual a mensagem sobre a nossa condição; como é que este trabalho gigantesco respondeu ao desafio de nos mostrar alguma coisa sobre o presente. Talvez daqui a duas semanas já pense de uma forma diferente porque, sendo esta bienal tão provocadora, fiquei a reflectir e a falar sobre o que vi. Foi a primeira vez que estive numa bienal em que a cada jantar e a cada almoço não se falava de outra coisa. E isso é um enorme sucesso. Mas como é que a partir da reflexão sobre como diferentes culturas, diferentes lugares e diferentes figuras absorveram a modernidade se pode organizar um conjunto de conclusões ou de hipóteses de trabalho sobre o momento presente? Como é que tudo isto se relaciona com o debate pós-moderno versus neo-moderno? Continuo com reticências...
Há um paralelismo entre esta bienal e
a forma como o MoMA gere a relação entre o passado e o presente da arquitectura, usando a História para encarar a contemporaneidade?
A arquitectura no MoMA nasceu como uma exposição em 1932 –Modern Architects – e essa exposição foi tão marcante e ganhou tanta aura que até hoje, quatro gerações mais tarde, pessoas que não a viram sabem o que ela quis dizer. Do mesmo modo, a arquitectura na Bienal de Veneza nasceu com Paolo Portoghesi – apesar de ter havido experiências anteriores – numa exposição construída como um manifesto do pós-modernismo. É interessante juntar estes dois momentos e enquadramentos institucionais, mas é uma questão delicada. Não posso dar uma resposta conclusiva. Não acredito verdadeiramente que seja necessário instrumentalizar toda a história; por outro lado, sempre que se leva a cabo uma pesquisa histórica num contexto público deve ser-se capaz de responder às questões propostas. Porquê este assunto e porquê agora?
Nas exposições do MoMA parece existir uma grande tensão entre comunicar para um público alargado e preservar uma aproximação rigorosa – quase académica – aos conteúdos. Como é que estes dois extremos dialogam entre si?
O desafio é esse, a sobreposição de audiências. O MoMA é um departamento de arquitectura num museu de arte. Por isso é muito diferente, por exemplo, do Royal Institute of British Architects, que faz exposições para um público profissional. No MoMA, por causa do seu impacto, os profissionais seguem de muito perto as exposições, tanto para serem influenciados como para as odiarem ou terem assunto de conversa. O extraordinário é que, das quase 750 mil pessoas que viram a primeira grande exposição que organizei –
Home Delivery (2008) –, a maioria não era especializada. É um desafio conceber uma forma de expor que tenha algo a dizer tanto aos profissionais como ao público em geral. Como juntar dois géneros de público, com diferentes capacidades de leitura de documentos arquitectónicos? Numa exposição de arte é mais simples: apesar de nos últimos anos a presença do curador ser cada vez mais forte, prevalece a noção de criar uma experiência não mediada e o mais tranquila possível, uma experiência directa de relação com o objecto de arte. Ora, é um cliché mas é verdade, a não ser que se construam edifícios em tamanho natural – o que foi feito com frequência –, em 95% dos casos as exposições de arquitectura exibem documentos. Muitos desses documentos são difíceis de ler. É como expor pautas de música. Nem todos os que lêem uma pauta são capazes de ouvir mentalmente a música que está escrita. É necessário saber ler música para perceber que não se está apenas a olhar para a caligrafia de Mozart mas também a observar uma música bela. Da mesma forma, que público vai ficar entusiasmado a ver o corte de um edifício? Enquanto o curador de arte procura ter uma personalidade discreta e não se impor, o curador de arquitectura assume com frequência o papel de tradutor entre o trabalho do arquitecto e o público em geral.
Há um público alargado interessado em exposições de arquitectura? Ou é um campo especializado e pouco atractivo?
Surpreendentemente, nas últimas décadas a arquitectura tornou-se muito popular. Estou impressionado com a audácia demonstrada pela Bienal de Veneza ao aceitar a exigência de Koolhaas de que esta edição dure seis meses. Será que vai ter visitantes? Mas há que conceber exposições de forma a que se tornem populares. Em geral, continua a ser verdade que as exposições de arquitectura não atraem grandes quantidades de visitantes. Na história do MoMA houve vários momentos – não recentemente, apenas num passado mais distante – em que a administração ponderou se deveria preservar o departamento.
Nos primeiros anos, se Philip Johnson não tivesse pago pessoalmente as despesas do pequeno departamento, provavelmente ele não teria sobrevivido.
A longo termo, a existência de uma colecção de arquitectura foi instrumental para o MoMA se transformar no que é hoje?
Sim, completamente. No final de 2006, quando comecei a debater ideias com a administração, estavam a acontecer exposições de arquitectura pela cidade em instituições que, historicamente, não tinham um interesse consistente na arquitectura. Pode dizer-se que era o fenómeno
hype da arquitectura do estrelato. A grande diferença é que o MoMA tinha uma colecção que mais nenhum museu tinha. Agora, o Metropolitan [Museum of Art] contratou um curador para arquitectura e design, e a arquitectura está a regressar. Será curioso ver se vão fazer um grande investimento e procurar formar uma colecção, ou não. Isso é o que distingue o MoMA: a qualidade da sua colecção, recentemente ampliada com o arquivo de Frank Lloyd Wright, a par do arquivo de Mies van der Rohe. É um investimento poderoso na história da arquitectura. Dito isto, normalmente não há a percepção de que a colecção do MoMA começou relativamente tarde. Nos primeiros anos não havia colecção, nem sequer intenção de ter uma. Ela começou a formar-se episodicamente depois da Segunda Guerra Mundial, mas verdadeiramente só começou na década de 60. Nos primeiros anos era apenas uma fototeca; o objectivo do departamento era fazer proselitismo através da difusão de imagens, quando ainda não havia Internet e era muito mais complicado comprar, emprestar e reproduzi-las.
Sendo o MoMA um museu de arte, não corre o risco de remeter os arquitectos para um contexto artístico, afastando-os do contexto profissional?
Esse dilema esteve sempre presente na arquitectura, desde que os primeiros livros foram escritos. No frontispício dos tratados do Renascimento, as gravuras representavam uma disciplina capaz de combinar arte e ciência. Não se trata de um tema novo. Há colecções que estão em organismos ligados às corporações profissionais, mas não creio ser uma coincidência o facto de o MoMA ter tido um papel tão proeminente. Colocar trabalhos de arquitectura no mesmo edifício e, por vezes, até na mesma galeria do que peças de Picasso ou Cézanne reflecte a forma como se percepciona a arquitectura. Tem as suas vantagens e as suas desvantagens, por isso prefiro focar-me nas vantagens.
Uma das razões para termos tantos visitantes é as pessoas descobrirem a arquitectura ao verem arte contemporânea. Dizem: “O que é isto? Isto é interessante.” E de repente estão a ver uma exposição de arquitectura. Fiz uma exposição sobre a adaptação de Nova Iorque aos efeitos das alterações climáticas e à subida do nível das águas do mar; foi extraordinário o número de visitantes que teve. Se se dissesse a essas pessoas para irem ver a mesma exposição ao American Institute of Architects, elas não iriam a correr procurá-la. Quando estão num museu, a ver Picasso ou à procura de arte contemporânea, descobrem outras exposições. Nos primeiros inquéritos percebemos que a maioria dos visitantes foi lá por outras razões. Mas, depois disso, a exposição foi tão debatida que muitos foram ao museu especificamente para a ver. É mais simples isto acontecer num museu de arte.
O MoMA adquiriu alguns desenhos de Álvaro Siza e o seu curador para a arquitectura contemporânea é um português, Pedro Gadanho. Há uma atenção especial ao que se passa em Portugal?
Ter um curador português é parte dessa atenção. O Pedro Gadanho trouxe ao museu uma visão muito particular, quer histórica quer da cena contemporânea. Ele é muito vivo e tem uma mente muito criativa, com um espectro de atenção muito lato. É óbvio que o facto de vir de um lugar com uma cultura arquitectónica extraordinária não é coincidência. Uns anos antes eu tinha vindo ao Porto para encontrar o Álvaro Siza, tínhamos conversado sobre tê-lo representado na colecção do MoMA e isso estava na minha lista. Quando o Pedro Gadanho chegou, foi uma das prioridades. Falámos com o Siza sobre o projecto que existia para o seu arquivo e para a criação de um museu em Portugal: não queríamos pôr esse projecto em causa, mas sentimos que era muito importante ter alguma coisa que representasse o seu trabalho no MoMA, alguma coisa que tanto nós como os futuros curadores pudéssemos vir a utilizar. O MoMA foi tão influente na formação de algumas histórias da arquitectura do século XX que se tornou um compromisso continuar a enriquecer essa história e preencher os vazios que existem. Portugal pós-1974 era inexistente na colecção e era importante corrigir esse problema.
Sente a falta de um museu e de uma colecção de arquitectura no Porto ou em Portugal?
O Porto tornou-se tão famoso pela sua produção arquitectónica, por ter dois prémios Pritzker a viver e a trabalhar lado a lado, que é expectável que algum género de museu possa integrar esta cultura profissional riquíssima.