Enquanto o urânio não enriquece o Níger
Entre as montanhas Air e as areias do Sara, o Norte do Níger tornou-se uma grande mina de exploração de urânio, uma a céu aberto, outra um gigante subterrâneo.
Quando a França começou a extrair minério de urânio do deserto no Norte do Níger, no início da década de 1970, Arlit era um punhado de cabanas de mineiros espalhadas entre as rochas das montanhas Air e as areias do Sara. O embargo petrolífero imposto pela OPEC em 1973 veio mudar isso. A França juntou-se às potências nucleares para se livrar da dependência do petróleo estrangeiro, e de um dia para o outro este canto remoto de África tornou-se crucial para os seus interesses nacionais.
Arlit cresceu até se tornar uma extensa povoação de 117 mil habitantes e a França depende agora da energia nuclear para gerar três quartos da electricidade que consome, tornando-se o país do mundo mais dependente do urânio. Por sua vez, o Níger tornou-se o quarto produtor mundial do minério, depois do Cazaquistão, Canadá e Austrália. Mas o urânio não enriqueceu o Níger. A antiga colónia francesa continua a ser um dos países mais pobres do planeta. Mais de 60% da sua população de 17 milhões sobrevive com menos de um dólar por dia.
Arlit é um local poeirento e negligenciado, sacudido por tempestades de areia vindas do deserto e que pouco é afectado pela riqueza mineral que todos os anos é transportada para a Europa. “Existem bairros que ficam sem água durante três semanas”, afirma o vice-presidente da câmara, Hassan Hamani. “Há escolas onde os alunos têm de se sentar no chão ou estudar em cabanas de palha.”
Agora, o Governo do Níger quer exigir mais vantagens a Paris, particularmente à empresa estatal nuclear Areva.
Os dois lados começaram conversações há mais de um ano, mas não conseguiram chegar a acordo antes de o actual contrato expirar, a 31 de Dezembro [a 20 de Março, o jornal francês Le Figaro noticiava que estavam “próximas do fim”]. Em meados desse mês, a Areva suspendeu a produção nos dois locais do país onde extraía minério: na mina a céu aberto de Somair, no Arlit, e no gigante subterrâneo de Cominak, ali próximo. A empresa diz que o encerramento serviria para manutenção, mas o Synamin, um sindicato que representa os trabalhadores mineiros, chamou-lhe estratégia negocial.
A produção recomeçou no início de Fevereiro. Os contratos caducados da Areva e do Níger nunca foram tornados públicos. Mas a Reuters teve acesso a documentos que revelam que as minas da Areva não pagam taxas de exportação sobre o urânio, nem sobre materiais ou equipamento usados nas operações de extracção, e pagam apenas 5,5% de royalties sobre o urânio que produzem.
Um porta-voz da Areva recusou-se a confirmar a autenticidade dos documentos ou a comentar o seu conteúdo. O Presidente do Níger, Mahamoud Issoufou, afirma que os acordos são resquícios da era pós-colonial, em que a França desempenhava um papel dominante nas economias dos seus antigos territórios em África. O seu Governo quer acabar com as reduções de impostos e aumentar os royalties — a sua principal fonte de rendimento vinda das minas — até 12%. Isso seria mais 5% do que a maioria dos estados da Austrália cobra, mas aproximaria o Níger dos 13% cobrados na última década pela província canadiana de Saskatchewan. No Cazaquistão, a taxa oficial é de 18,5%. A Areva também produz urânio no Canadá e no Cazaquistão, mas recusou-se a detalhar os royalties que paga nesses países. (Na Austrália, explora o urânio, mas não faz a extracção.)
O ministro das Minas, Omar Hamidou Tchiana, que encabeça as negociações pela parte do Níger, afirmou à Reuters que o Governo quer aumentar os rendimentos provenientes do urânio até constituírem pelo menos 20% do orçamento, estando actualmente nos 5%. “Durante 40 anos, o Níger tem sido um dos maiores produtores mundiais de urânio, mas é ainda um dos países mais pobres do planeta”, afirmou. “Ao mesmo tempo, a Areva tornou-se uma das maiores empresas do mundo. Está a ver o contraste?”
O preço do urânio
A Areva, que em 2012 produziu cerca de um quinto do urânio mundial, argumenta que uma taxa mais elevada faria com que o seu negócio no Níger deixasse de ser rentável. Com os preços do urânio a descer 70% em relação ao pico atingido em 2007, uma fonte diplomática em Paris adianta que a Areva não concordaria com um enorme aumento do preço que está actualmente a pagar ao Níger. “O Níger tem de ter em conta que a Areva não está com grande saúde financeira e que o preço do urânio está baixo e não vai subir tão cedo”, afirmou.
Para a Areva, firmar um novo acordo é importante. Para o Níger, é vital. Com rendimentos globais de 9,3 mil milhões de euros em 2013, a empresa francesa é quase duas vezes maior do que toda a economia do Níger, de acordo com o FMI. Com prejuízos e dívidas de perto de 4 mil milhões de euros no país, continua a ser o maior empregador privado do Níger e o seu maior exportador.
A Areva não fornece o balanço dos lucros das suas operações ali, mas diz que o actual acordo é justo. Afirma que nos últimos 40 anos o Níger recebeu à volta de 80% dos “benefícios directos” — impostos e dividendos — das suas minas de urânio, com a Areva a ficar com o restante. Estima que as minas tenham pago um total de 82 milhões de euros em dividendos e impostos em 2011, e 123 milhões em 2012.
Mas a Extractive Industries Transparency Initiative (EITI, uma coligação internacional de governos, que inclui o Níger e empresas que procuram melhorar a transparência sobre os rendimentos provenientes dos recursos naturais) estima que as minas da Areva pagaram um total de 66,3 milhões de euros ao Níger em 2011. Os números de 2012 ainda não estão disponíveis.
Os últimos contratos mostram que a Areva recebeu uma série de benefícios fiscais, alguns dos quais estavam contemplados pela lei da extracção mineira de 1999 do Níger. Assinado a 9 de Novembro de 2001, e com efeito durante dez anos a partir de 1 de Janeiro de 2004, os contratos estabeleciam que a Areva ficava isenta de impostos aduaneiros sobre todas as suas produções de urânio; e isenta de impostos e taxas de entrada no país de todos os materiais, equipamento, máquinas, peças e produtos petrolíferos usados nas operações de extracção, incluindo sulfúrio e outros químicos usados para processar o minério, veículos e roupas de protecção. Ficou protegida por uma cláusula de estabilidade, para que não fosse afectada pelo aumento das taxas trazido pela nova lei da extracção mineira de 2006. E se alguma empresa de extracção de urânio conseguisse um contrato melhor, a Areva passaria automaticamente a beneficiar das mesmas condições.
Conseguiu ainda garantias de que qualquer auditoria feita pelo Governo permaneceria estritamente confidencial. Recebeu uma exoneração de até 20% de impostos sobre os rendimentos da empresa para ajudar a financiar prospecções futuras.
Até 2007, a Areva tinha o monopólio da exploração de urânio no Níger. O seu único rival, a Somina, uma joint venture entre o Governo e o ramo estrangeiro da China National Nuclear Corporation, apareceu um ano depois da nova lei de 2006, que veio reduzir os cortes nos impostos cobrados.
O ministro Tchiana diz que as reduções nos impostos custaram ao Governo entre 23 e 30 milhões de euros por ano em potenciais rendimentos fiscais e que quaisquer novos contratos teriam de se sujeitar à legislação de 2006. Mas o porta-voz da Areva afirma que as reduções fiscais são importantes para estimular a investigação e o desenvolvimento do sector mineiro e para permitir às minas continuarem a produzir apesar da queda dos preços do urânio e do aumento dos custos de produção. Adianta que as empresas mineiras pagam a taxa de 30%, que é a norma no sector.
Os sindicatos do Níger e os activistas pela transparência afirmam que nos últimos anos a Areva se tornou mais agressiva no que diz respeito a reduzir os seus lucros — ou seja, quanto a ver aumentados os impostos.
Um documento confidencial do Ministério das Minas visto pela Reuters, sem data, mostra que os custos de produção na mina de Somair duplicaram em apenas cinco anos: de 19,783 francos CFA (0,03) por quilo em 2006 passaram para 40,146 francos CFA por quilo em 2011. Na Cominak, os custos por quilo aumentaram de 27,277 francos CFA para 45,603 em 2010. “O nosso objectivo é diminuir estes custos de produção para que o Níger possa lucrar mais”, afirma o ministro Tchiana, adiantando que o Governo patrocinou uma auditoria independente às operações da Areva no Níger. O relatório, feito pela consultora BearingPoint, com sede na Holanda, ainda não foi tornado público.
A Areva nega veementemente estar a aumentar artificialmente os custos. Justifica o preço mais elevado com características técnicas complexas dos novos depósitos de minério que ajudaram a aumentar a produção em um terço nos últimos cinco anos, mas que também levou a um aumento do custo do combustível para os veículos e maquinaria, bem como do ácido sulfúrico usado no processamento do urânio.
Sem água ou electricidade
Na mina de Somair, fora de Arlit, camiões amarelos trabalham sem descanso para extrair o minério verde acinzentado de buracos a 100 metros de profundidade. O minério acaba numa fábrica de processamento onde é transformado em yellowcake [matéria-prima para produção da energia gerada por um reactor nuclear]. À noite, luzes de estádio iluminam o breu do deserto, mas o silêncio é cortado pelo som metálico do triturador. Os contratos que expiraram declaravam que a Areva forneceria electricidade e água a Arlit e que a empresa ajudaria a manter a estrada que liga Arlit à cidade de Tahoua, a mais de 500 quilómetros a sul. No entanto, a estrada é intransitável em muitas partes, obrigando os camiões a circular pela areia do deserto. A Areva diz que deu anualmente 1% dos rendimentos das suas minas a um organismo do Governo responsável pela manutenção da estrada, cumprindo os termos do contrato.
De noite, a maior parte da cidade está às escuras. Uma torre de água da Areva abastece a localidade, mas os residentes — que não têm direito a água ou electricidade gratuitas nos termos do contrato — pagam à empresa de água do Estado. Alguns em Arlit estão zangados por a mina não ter trazido mais prosperidade. Cerca de dois mil empregados da empresa vivem em zonas limpas, com clubes e restaurantes. O resto da cidade vive numa pobreza empoeirada, em ruas sem asfalto e em casas de adobe.
Governantes e ONG apontam frequentemente para os altos níveis de corrupção como uma das razões para os maus serviços. Os governos locais — que beneficiam de 15% dos impostos de acordo com a lei de 2006 — queixam-se de que os pagamentos vêm com mais de dois anos de atraso. Os responsáveis locais dizem que as empresas de extracção pagam os royalties ao Governo central todos os meses e que os atrasos são da responsabilidade de Niamey, a capital. O ministro das Minas, Tchiana, recusou-se a comentar a acusação, afirmando tratar-se de uma questão do Ministério das Finanças. Um porta-voz do ministério não respondeu aos pedidos para comentar o caso.
O Níger tem uma história política conturbada, marcada por rivalidades e golpes, e apesar de o Governo de Issoufou ter feito avanços no combate à corrupção, o país continua no 106.º lugar em 177 do índice anual de percepção da corrupção da Transparency International.
Mesmo assim, Rhissa Feltou, presidente da câmara da capital regional, Agadez, acusa as duas minas da Areva de fazerem muito pouco pelo desenvolvimento do Norte. “Estas empresas não estão a pagar impostos suficientes”, diz Feltou. “Estamos desagradados com a presença das empresas de minérios aqui... A extracção não está a corresponder às expectativas das pessoas.”
Criação de emprego mas sem hospital público
No seu escritório em Niamey, Tchiana lembra que a Constituição de 2010 estipula que as indústrias de extracção têm de ser transparentes e servir os interesses do país. “Em vez das montanhas de lixo em Arlit, queremos edifícios, casas, hospitais e investimento”, diz. “Depois de mais de 40 anos, a Areva nem sequer construiu uma sede no Níger.”
A empresa diz que já faz muito, gastando seis milhões de euros por ano na saúde e em projectos de desenvolvimento económico no Níger. Não há um hospital público, mas as minas autorizam os habitantes a frequentar as suas clínicas gratuitamente. A Areva também renovou e construiu escolas locais. “Estamos a contribuir directamente através da criação de emprego e geramos impostos para o orçamento estatal. Esta é a nossa contribuição, mas não podemos fazer tudo”, afirmou à Reuters o chefe executivo da Areva, Luc Oursel.
Um dos grandes problemas é calcular o preço oficial do urânio. Essa é a base de todos os royalties, taxas e lucros e o Níger quer fixá-lo o mais alto possível. Nos últimos dois anos, o preço acordado foi de 73 francos CFA (150 dólares) o quilo, quase o dobro do preço actual de 80 dólares. A Areva quer que o novo acordo se faça com base numa fórmula usando o preço de mercado actual e preços de contratos a longo prazo em vez de negociações políticas, de acordo com minutas de uma reunião ocorrida em 2012 assinadas pelos dois lados. O preço mudaria consoante os preços praticados na altura nos mercados internacionais, lê-se nas minutas, que apresentam esta proposta como tendo partido da Areva. A empresa não confirmou a autenticidade do documento.
Niamey parece ter tido algum êxito em extrair mais algum dinheiro à Areva. As minutas da reunião mostram que a Areva concordou em pagar ao Níger mais 35 milhões de euros nos três anos a partir de 2013 por compensação pelos atrasos na construção de uma mina de urânio gigante em Imouraren, no Norte do país.
O Presidente Issoufou insiste que a mina, que criará milhares de novos postos de trabalho, deverá começar a produzir antes de ele se recandidatar às presidenciais de 2016. A Areva afirmou publicamente em Março que a taxa servia para pagar a segurança — apesar de os actuais contratos estipularem que a segurança das minas é da responsabilidade do Níger.
Ameaça islamista
A segurança é certamente uma grande preocupação. Sete pessoas relacionadas com um projecto da Somair foram sequestradas em 2010 por um ramo local da Al-Qaeda, apesar de todas elas terem sido mais tarde libertadas. Em Maio, a mina da Somair foi atacada por bombistas suicidas ligados à Al-Qaeda e a região está agora apinhada de militares. Alguns consórcios europeus acabaram mesmo por se retirar por completo e o Norte do Níger é considerado uma zona a evitar por europeus.
A ameaça islamista veio criar grande pressão no orçamento do Níger, fazendo aumentar ainda mais a importância das conversações. “Precisamos de controlar melhor o Norte e para isso temos de ter infra-estruturas, para as quais precisamos da ajuda dos parceiros internacionais”, comentou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mohamed Bazoum.
A questão para Issoufou é saber até que ponto pode pressionar o Presidente François Hollande num novo acordo.
Formado em França em Engenharia de Minas, o Presidente do Níger é um antigo activista pró-democracia que conhece Hollande desde os dias que passaram juntos na Internacional Socialista. Issoufou chegou mesmo a trabalhar para a Areva numa das minas entre 1985 e 1992, entre outras coisas, como secretário-geral. Assim que foi eleito Presidente, em 2011, começou a fazer pressão para que o urânio do Níger fosse vendido a um preço mais favorável.
Mas apesar da “relação de confiança” entre Issoufou e Hollande, como é descrita por uma fonte diplomática francesa, as novas exigências do Níger não foram bem aceites por Paris. “O clima que se criou entre as duas partes não é muito bom”, diz o diplomata. Issoufou afirmou em Dezembro que as negociações estavam a progredir “normalmente”, mas sugeriu que o Níger poderá virar-se para outros países — não disse quais — para ajudarem a extrair a sua riqueza mineral.
As conversações sobre o contrato fazem machetes nas primeiras páginas dos jornais do Níger e tem havido greves e manifestações contra a Areva. Um olhar rápido ao orçamento explica por que é importante: a ajuda ocidental perfaz quase 40% do orçamento do Estado, a maior parte vinda da França; o peso dos impostos no PIB é dos mais baixos da África Ocidental, de acordo com o FMI. “Hoje, o Níger enfrenta o poder da França. Não está a negociar com uma empresa”, comenta Ali Idrissa, director do ROTAB, o ramo local do Publish What You Pay, grupo a favor da transparência. A Areva ameaçou fechar a produção na Somair em Outubro, depois de o Níger não ter conseguido encontrar comprador para a sua pequena parte da produção de 2013. Está preparada para fazer um jogo duro.
PÚBLICO/ Reuters